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Foto do escritorJanaína Botelho

A vila de Nova Friburgo: precioso torrão




Uma preciosidade. Uma deliciosa crônica de fins do século 19, publicada no periódico Brazil Illustado pelo estudante de engenharia Adolpho Hartmann, aluno da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Apesar de um tanto técnica é interessante a análise que faz sobre as condições materiais da estrada de ferro Cantagalo. Auxilia-nos a consolidar a memória do trem em Nova Friburgo. Na segunda parte, uma narrativa sobre a vila de Nova Friburgo, no ano de 1887. Sem mais delongas, transcrevo o texto, quase na íntegra, suprimindo somente alguns extratos de pouca importância:


“Partimos. Éramos um grupo alegre e ruidoso de estudantes em férias. Íamos nós, os alunos da Escola Politécnica, em exercícios práticos, percorrer a estrada de Ferro Cantagalo, e buscar um abrigo contra a temperatura candente deste alto forno, a Corte. Às cinco horas e ¾ de uma manhã de janeiro findo, a barca, em que tomamos passagem, singrava nas águas tranquilas, como uma superfície espetacular, da formosa Guanabara. (...) Ao longe, na frisa dos horizontes ensanguentados, estendia-se a linha harmoniosa e ondulante dos contornos da Serra dos Órgãos, dourados pelos lampejos da luz matinal. (...) De repente, ouviu-se um ruído surdo. Abicávamos em Sant´Anna de Maruí. Após havermos examinado detalhadamente, durante algum tempo, todas as locomotivas Baldwin e Fell pertencentes à linha férrea, que devíamos estudar, seguimos em trem especial para o Macuco, ponto terminal da linha. Viajava em nossa companhia, além dos nossos ilustrados lentes(...) o simpático engenheiro Sr. Dr. São Paulo, que veio expressamente ao nosso encontro, por especial recomendação do distinto diretor da estrada de Ferro Cantagalo, Sr. Dr. J. Teixeira Soares, uma das glórias da engenharia brasileira e cavalheiro de uma amabilidade extrema. Seis horas e trinta minutas fora o sinal da partida. Embarcamos às pressas, sobraçando as nossas malas. O comboio pôs-se logo em movimento. A nossa viagem em wagon estreou estupidamente, mas acabou com as alegrias sonoras de uma première, cheia de visualidades estupendas. A princípio a natureza repetia-se com uma monotonia insípida. Tudo era banal e chato, prosaico e desanimador em torno de nós. A vegetação raquítica e enfezada arrastava-se por uma zona estéril e alagadiça. A planície corria extensa e baixa, coberta de pantanais medonhos. Os decadentes povoados e as velhas fazendolas, que se avistavam espalhados aqui e acolá, eram como antíteses pífias, na grande solidão daquelas paragens desertas. Felizmente chegamos a Cachoeiras. Havíamos percorrido 77.440 quilômetros. Estávamos na raiz da serra. A estrada de ferro, cuja bitola é de 1,10 m, além da grande quantidade de trilhos Barlow, atirados à margem da estrada, após a sua substituição pelos trilhos Vignole, nada possui digno de nota neste trecho, a não serem extensos alinhamentos retos e pequenas pontes metálicas, de viga reta e treliça americana, contraventadas superiormente em arcos, o que é de um mau gosto incrível.


Próximo da Estação do Porto das Caixas existe também um túnel de 33,35 m de comprimento, perfurado em rocha pouco consistente e revestido de alvenaria de tijolo. Até a estação de Cachoeiras, a famosa estrada de ferro de Cantagalo, um verdadeiro desastre sob o ponto de vista técnico e financeiro, não tem oportunidade de empregar o decantado sistema Fell. Esse sistema, verdadeiro meio termo entre o de locomotiva de simples aderência e os sistemas especiais, foi provisoriamente, durante a perfuração do túnel, empregado no Monte Cenis, onde os acidentes repetidos patentearam os defeitos da locomotiva de trilho central e pressão lateral, defendida pelo Barão Séguier e aplicada pelo engenheiro inglês, Sr. Fell. Da Itália foi importado o sistema Fell para Cantagalo, onde apesar das inúmeras tentativas de aperfeiçoamento, tem sido uma das causas da ruína econômica daquela ferrovia, em má hora encampada pela província do Rio de Janeiro. Pelos abalizados engenheiros Srs. Drs. R.Vieira Souto, nosso digno lente e H. Hargreaves, foi projetada para a estrada de ferro Cantagalo a substituição do sistema Fell pelo de planos inclinados, cujo motor seria à água. Ultimamente encomendou-se à fábrica Baldwin, em Filadélfia, um tipo de poderosas locomotivas, com freios especiais aderindo ao trilho central, característico do sistema Fell, que em uma palavra, fora totalmente desprezado. Aqueles freios servem para regular a velocidade, nas descidas das rampas assaz escarpadas. Na América do Norte, sobre o Monte Washington, no New-Hamsfire, aplicou-se igualmente o sistema Fell sem nenhum resultado. Esta disposição que emprega para obter maior aderência, o trilho central, “contra que fazem pressão”, num plano horizontal, as rodas motrizes conjugadas da máquina, foi ali substituído pelo de cremalheira Riggenbach, sendo munida a máquina de uma roda dentada que engrena com aquela última. Digamos de passagem que os sistemas Agudio e Righi são os únicos destinados a vencer a subida das nossas serras, no Brasil.”


A seguir Adolpho Hartmann faz uma narrativa de sua viagem até Nova Friburgo analisando as condições materiais da estrada de Ferro Cantagalo, a paisagem local e quando chegar à vila serrana, aspectos de sua vida cotidiana. Transcrevo a crônica, suprimindo alguns extratos de pouca importância:


“De Cachoeira para cima opera-se uma mutação lenta e gradativa no vasto panorama circundante. O cenário não se transforma bruscamente. Os efeitos surpreendentes de sombra e colorido, a variedade e novo aspecto das formas naturais, as deformações do solo, e os pequeninos detalhes de mise-en-scène: tudo isto parecia estudado com esmero, ensaiado a capricho e montado artisticamente, como nas mágicas teatrais, para produzir uma impressão estética e duradoura aos olhos estupefados dos espectadores. Natura non facit saltus. Todas essas perspectivas que se desenrolam com uma sucessão lógica ao longo do Vale do Macacu, cujas águas límpidas e marulhosas rolam sobre um leito de rochas que nascem à flor do terreno de tons avermelhados; todos esses painéis assombrosos, em que o ponto de vista varia a cada instante, à medida que se sobe, são realmente lindos; mas brutais, fatigantes e esmagadores. Com efeito, desde a estação da Vila-Nova até a de Cachoeiras, que fica 48,22 m de altitude, a linha segue o vale do rio Macacu, no qual ela desenvolve-se até o Alto da Serra, situado a 1.080,58m acima do nível do mar. Nesse importante trecho (...) empregou-se o condenado sistema Fell, os declives chegam até 10% e as curvas descem até raios de 25m: o que se pode chamar um tour de force inaudito, tornando-se por isso a ascensão difícil e muitas vezes perigosa. (...) Demais, justamente por causa da subida muito íngreme, os velhos trilhos de ferro gastavam-se depressa, sendo renovados de três em três meses mais ou menos. Consumia-se assim grande parte da renda da estrada, com a conservação da linha, nesta seção, que vai da Boca do Mato, até o ponto culminante da via permanente. Tornou-se preciso estancar semelhante fonte de despesas e empregar os atuais trilhos de aço Bessemer, que só se deterioram no fim de três anos aproximadamente. Não são pois raros os desastres ocasionados ao galgar essas rampas fortíssimas, em que os alinhamentos curvos de raios tão diminutos multiplicam-se à borda de precipícios insondáveis, nas depressões profundas e sombrias rasgadas nos seios dos rochedos, onde se cavam os desbarrancados junto de despenhadeiros horríveis. Enquanto o monstro de aço contorcia-se, soltando gemidos estridentes ao cavalgar o dorso da penedia, nós contemplávamos absortos e pensativos a paisagem esplêndida, feérica, cintilante e grandiosa, onde avulta a floresta densa das árvores gigantescas; ou ouvimos atentos o sussurro longo e monótono das catadupas, cujos ecos casavam-se ao ruído áspero da locomotiva, num dueto estranho. Estamos no Alto da Serra onde se acham estabelecidas as oficinas para os reparos necessários ao material rodante da estrada. Ali opera-se a divisa das águas e a temperatura baixa consideravelmente. A vista dilata-se por uma área mais ampla e goza-se de um bem estar confortável. Depois, principia-se a descer suavemente através do vale do rio Santo Antônio até Nova Friburgo(...) externemos rapidamente a nossa opinião de conjunto a respeito da estrada de ferro Cantagalo. A impressão, que a visita dessa via-férrea fluminense deixa no espírito do observador é a princípio péssima; por fim boa e favorável. Realmente, a linha além de ser pobre em obras de arte, tem graves defeitos de traçado, tais como curvas muito apertadas e rampas de 8% a 10%; defeitos que, reunidos ao deplorável emprego da disposição Fell, em excesso complicada, deram um resultado totalmente negativo. Mas as belezas naturais e as dificuldades vencidas, à proporção que se caminha para a ponta dos trilhos, servem de uma espécie de compensação.(...) Voltemos para Friburgo.”


Fundada em 1819, às expensas do Estado, este antigo núcleo colonial suíço, sito no Morro Queimado, tornou-se mais florescente com a localização de imigrantes alemães feita em 1824, e emancipou-se em 1831, passando desde então a denominar-se Vila de Nova Friburgo.(...)correm os rios Bengala, Cônego e Santo Antônio, cujas águas avolumando-se com as cheias periódicas, extravasam pela zona lateral, onde foram lançadas as fundações da ex-colônia, produzindo inundações perigosas e causando graves danos ao povo laborioso daquela vila. (...) Desde a sua fundação, a atraente ex-colônia suíça, que no futuro será a nossa mais célebre cidade de banhos, recomendou-se sempre por seu clima temperado e pelas suas águas cristalinas. Junte-se a tão propícias condições higiênicas, um estabelecimento hidroterápico de primeira ordem, inaugurado pelo falecido médico Dr. Carlos Éboli, e ter-se-á a razão porque, no caso de certas moléstias, os enfermos e convalescentes preferem ir respirar temporariamente os ares puros e saudáveis de Friburgo. (...) Da inspeção minuciosa às notas tomadas pelo Sr. Carlos Engert, de julho de 1882 a dezembro de 1886, deduzimos uma média climatológica favorável à salubridade desse canto de província privilegiado, apesar das repetidas chuvas e da excessiva umidade relativa. (...) Sob o ponto de vista arquitetônico, a edificação da vila é, em geral, singela e despretensiosa. Destacam-se, todavia, entre as modestas casas, que bordam as compridas ruas e curvas travessas, vários edifícios elegantes e suntuosos, de uma arquitetura um tanto fantasista, porém esteticamente belos. (...)Existe também uma praça ajardinada e o que é mais, uma outra famosa, sita junto à encosta de um morro; é a pitoresca Fonte dos Suspiros, apelido romanesco, o rendez-vous vespertino, em que se reúne a high-life friburguense. Perto admira-se Vilage, bairro encantador, habitado por uma boa parte da população. (...) Este vasto estabelecimento, onde estivemos hospedados, não receia de competir, em luxo, asseio e comodidade, com os congêneres hotéis Central e Salusse. Seja-nos permitido terminar, narrando brevemente a nossa estada adventícia em Friburgo. Francamente, foram uns dias enfarruscados e frios, cheios de tristezas tumulares e arrastando-se à toa. Para variar, as noites...Oh! Que noites deliciosas e inolvidáveis. Após a monumental troça feita aos padres salesianos pelos alunos da Escola Politécnica, caíram estes na simpatia dos habitantes de Friburgo. Talvez por isso fossemos aí bem acolhidos e honrados com imerecidas provas de apreço. Depois de escurecer, o nosso ponto de encontro era o Hotel Leuenroth. O amplo salão de visitas do hotel, diariamente transformado para as soirées dadas em nossa honra, tinha um aspecto deslumbrante. Havia uma concorrência limitada e seleta de moças, que davam àquelas reuniões familiares o tom íntimo de um idílio feérico. Ao som do piano, os pares voavam, voavam arrastados vertiginosamente pela cadência da música. As curvas moles dos seios virginais arfavam ao cansaço das danças, enquanto lá fora a brisa ventarolava as ramas dos arbustos. Ilusões da mocidade! Almas abertas em flor à imensa frescura das manhãs da vida! Esperanças translúcidas sorrindo na sua plena eclosão luminosa! Tais são as reminiscências confusas e fugazes das noites passadas em Friburgo! Essas perfumadas recordações, esses perfis idealmente divinos de rostos feminis vistos através da transparência de uma sala de baile; em suma, esses painéis esbatidos de luz, com um fundo artisticamente ensombrado, forneceriam o assunto de uma tela magnífica ou de um romance cintilante; jamais, contudo, o tema destas mal alinhadas linhas! Ah se todos os moradores da Corte se quisessem compenetrar na utilidade de ir atravessar a fase mais quente do verão, em Nova Friburgo. Sim leitores, ide passar o vosso tédio acolá defronte, no alto daquelas montanhas azuladas. Verei como um grupo de gentlemen e senhoras da melhor sociedade esforçar-se-á por vos fazer esquecer um pouco da vossa vida pacatamente burguesa, com juma amabilidade e um espírito verdadeira mente adoráveis. Voltareis de lá alegres, com o coração talvez ferido por alguma loura saudade; mas com os pulmões arejados por um oxigênio tonificante e puro. Foi o que nos sucedeu.”

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