top of page
Foto do escritorJanaína Botelho

UM ESCÂNDALO QUE ABALOU NOVA FRIBURGO: O CASO ALBERTO BRAUNE

Atualizado: 18 de jun. de 2021



O ano era 1905. Felicidade Emmerick vivia em companhia da tia Maria José Trannin desde os 10 anos de idade, a quem tratava com o desvelo e o carinho que mereceria uma filha. Educava-a nos rígidos princípios da virtude e do bem. Quando sucedia da menina adoecer costumava procurar o farmacêutico Alberto Henrique Braune. Felicidade começou a sofrer de “órgão delicado”, problema normal nas mocinhas que começam a menstruar. Como o tratamento exigido pela enfermidade fosse demorado, Felicidade ia diversas vezes ao consultório do farmacêutico acompanhada sempre de sua tia. Com o tempo, em razão do conhecimento e confiança no farmacêutico, d. Maria José permitiu que Felicidade fosse desacompanhada às consultas. A mocinha em dado momento começou a sentir dores intermitentes. Alberto Braune insistia que ela tomasse “apiol” para as dores e estranhamente Felicidade se recusava tomar o medicamento. A seguir o farmacêutico prescreveu uns “pós em papeizinhos” para aliviar as suas dores. Tudo parece indicar pela sequência dos fatos que Braune havia pactuado com Felicidade dar-lhe drogas abortivas quando soube da gravidez, mas ela teve medo de ingeri-las. Passado um tempo, a tia percebeu que Felicidade começava a “ganhar corpo”. Como o volume no ventre tomasse proporções suspeitas, d. Maria José pensou em levá-la a um médico, o dr. Galdino do Valle. Felicidade recusou-se a ir e admitiu a gravidez. Desatando em prantos, confessou que a causa de sua “perdição” foi Alberto Braune. No dia seguinte, Maria José Trannin procurou o farmacêutico na Farmácia Braune a quem lançou no rosto a ignomínia do seu procedimento. Ele a levou para uma sala para que as pessoas não ouvissem as suas acusações. Negou tudo dizendo que se ele fosse o autor da desonra da moça teria receitado um remédio abortivo. Como era também delegado de polícia, d. Maria José deu queixa ao chefe de polícia do Estado. (O Paiz, seção Desonra,12 de agosto de 1905) A notícia correu solta na cidade. No entanto, os principais jornais locais como O Friburguense e O Nova Friburgo não deram uma nota sequer. Mas quem era Alberto Henrique Braune? Nascido em Nova Friburgo em 17 de dezembro de 1864, de família tradicional, se formou farmacêutico em 1886. Casado e pai de imensa prole possuía um consultório junto à Pharmacia Braune na Rua General Argolo onde também residia com a família em um belíssimo palacete. Com a sua morte a Gal. Argolo passaria a ser denominada de Alberto Braune. Seus desafetos o acusavam de curandeiro e de contravenção a lei pelo exercício ilegal da medicina. Major da Guarda Nacional fazia parte do Partido Republicano Fluminense sendo aliado de políticos tradicionais como Galdino Antônio, pai de Galdino do Valle Filho, Ernesto Brasílio, Júlio Zamith, Farinha Filho, Nelson Kemp e do mandão de aldeia Carlos Maria Marchon. Enquanto a tia de Felicidade alardeava o ocorrido e sofria com a sobrinha desonrada e caída na desgraça, situação de uma moça desvirginada e mãe solteira, os adversários políticos de Alberto Braune tiravam proveito da situação. Para o seu azar o promotor público do caso, Plácido Modesto Martins de Mello, era um destes desafetos. Na ocasião, tanto as funções de delegado de polícia como a de promotor público eram nomeações do presidente do Estado, e não concursados como hoje. Alberto Braune reagiu rigorosamente às provocações e com grupos armados fazia ameaças aos seus detratores. Percorriam as ruas do centro da cidade intimidando e espancando os oposicionistas. O Coronel Zamith, sub delegado, comandava as operações. A farmácia Braune se transformou em delegacia de polícia. O sargento do destacamento policial, à paisana e descalço, armado de cacete e revólver, praticava agressões e arbitrariedades. (Correio da Manhã, seção Friburgo, 18 de agosto de 1905) O jornal O Correio Popular, folha do partido chefiado por Modesto de Mello, deputado estadual, foi impedido de circular sob pena de ser empastelado. Há referência de que o grupo do promotor Plácido Modesto se postava em frente a farmácia Braune em atitude provocadora e também ameaçou empastelar o jornal O Nova Friburgo. A situação era de muita tensão. Um jornalista clamou por civilidade na política fluminense. Além da violência nas ruas entre os capangas de ambos os lados, na arena do jornalismo uma batalha de retórica se operava entre os jornais do Rio de Janeiro. Um dos adversários de Alberto Braune, Bricio Filho, era o correspondente do jornal Correio da Manhã e residia em Nova Friburgo. Aos jornais cariocas coube o início da divulgação da defloração e desonra de Felicidade Emmerick. O primeiro a dar publicidade deste fato foi A Tribuna exigindo em nome da honra ofendida a intervenção das autoridades competentes. O decano O Friburguense somente produzia artigos elogiosos a Alberto Braune, enaltecendo-o. Por ocasião de seu aniversário natalício foi estampado o seu retrato com minuciosa biografia traçada com carinho e dedicação. Entretanto, em um editorial sob o título “Desonra”, assim se exprimiu: “São tão gravíssimos e deprimentes da honra e do bom nome de um homem de bem os fatos narrados por alguns jornais da capital federal contra o Sr. Alberto Henrique Braune, delegado de polícia desta cidade, fatos referidos também pelo público friburguense, que sua senhoria não pode deixar de apresentar uma defesa satisfatória e completa que o lave da mancha do crime que lhe é atribuído”. (Correio da Manhã, seção Livre, 16 de agosto de 1905).


Este episódio provocou uma tensão muito grande na cidade em razão de ter sido utilizado pelos seus adversários políticos. Como os jornais do Rio de Janeiro serviram de arena das narrativas deste acontecimento, Alberto Braune apresentou a sua defesa no Jornal do Commercio, seguindo o texto na íntegra.


“Não me é lícito guardar silêncio quando pesava sobre o meu nome acusações graves, trazidas a público pela imprensa, notadamente o Correio da Manhã, que tem como correspondente nesta cidade o Dr. Bricio Filho, meu inimigo implacável e interessadíssimo na política local. Não escrevo para meus amigos, para os que intimamente me conhecem e me sabem incapaz de praticar a ação infamante que me imputam. Também não escrevo para meus adversários friburguenses. Estes não ignoram que estou sendo vítima da mais audaciosa das calúnias, e, na sua quase totalidade, reprovam publicamente o procedimento de quem, revelando a mais absoluta falta de escrúpulos, não duvida utilizar-se dessa indigna arma de oposição.


Dirigem-se estas linhas ao Exa. Sr. Dr. Presidente do Estado, a quem me prendem os laços da mais estreita solidariedade política; ao Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia, a cuja brilhante administração tenho prestado o meu frágil mas leal concurso na qualidade de delegado neste município; ao grande público, enfim, que precisa conhecer toda a verdade, para completa reabilitação da inocência e eterno castigo dos detratores.


De que me acusam estes, no delírio de sua paixão partidária? De ter violentado uma menor, tentando, em seguida, fazê-la abortar por meio de medicamentos a tal fim adequados. A minha denunciante ostensiva é D. Maria José Trannin, pobre e inculta mulher, ignorante e rude, habitando o sertão, muito relacionada com os meus adversários, uma roceira, em suma, criatura fraca e muito sugestionável, que facilmente foi por eles convertida em dócil instrumento de suas maquinações. A pretendida menor e vítima chama-se Felicidade. Esta mulata não se encontra sob a proteção legal da menoridade, pois tem 26 anos presumíveis. Criada doméstica da Sra. Trannin, a quem o marido a abandonou há tempos, retirando-se para a Europa, a minha denunciante não lhe dispensou jamais aqueles cuidados e extremos que alardeia agora; e somente hoje é que se lembra de fazê-la passar como sua pupila!

Várias vezes é certo esta infeliz apareceu em minha farmácia, dizendo-se doente, pedindo-me remédios para o estômago, pela manhã, precisamente à hora em que maior é o número de pessoas que esperam ser atendidas pelos meus empregados ou por mim. Apelo para todos. Pessoas da mais elevada categoria, assim como pessoas do povo [que] encontram-se todos os dias na minha farmácia, a essa hora matinal. Alguém viu ou notou porventura, de minha parte, uma palavra, um gesto, um movimento que denotasse, que revelasse intenção ou desejo de galantear ou seduzir a parda Felicidade! Não, nunca! Nunca lhe dirigi uma só frase desonesta, ou mesmo duvidosa que pudesse ferir a sensibilidade do mais delicado e virginal dos ouvidos. Nunca!


Felicidade vinha sempre sozinha desde o sítio distante em que trabalhava até a minha farmácia. Atravessava então extensa zona, percorrida por toda a gente, e onde, de quando em quando, aparecia uma ou outra casa. Também desacompanhada regressava sempre ao sítio, quando não pernoitava na cidade, ora em casa de uns, ora em casa de outros, como várias vezes sucedeu...[trema dele]


Há muito tempo deixou de aparecer em minha farmácia a dita Felicidade, vindo em seu lugar a sra. Trannin, que me pedia medicasse a sua criada, hoje dada como pupila, a qual, dizia, estava sofrendo de uma suspensão. Escrupulosamente aconselhei-a a que ouvisse a opinião de um profissional. Mas como insistisse pela minha medicação, não duvidei entregar-lhe para ser ministrado à enferma, que era solteira e reputada de bons costumes, um vidro de Apiol, aconselhando-a, porém, a que procurasse ouvir um médico antes de ministrar o medicamento. Era, ninguém o contesta, o aconselhado remédio para restabelecer o fluxo cataminial.


Meses depois D. Maria José Trannin voltou à minha presença, e então me disse que Felicidade se restabelecera do primitivo sofrimento, acusando agora doença de estômago. Indiquei-lhe então, compelido pela sua viva insistência, pílulas de lacto de ferro e genciana. Ainda desta vez, como se vê, não foram mal indicados esses remédios. Nunca ministrei à enferma aloes e açafrão e desafio a prova do contrário. Os papéis comprados em outra ocasião continham bicarbonato de sódio e benzonaphto. Nem a criada, nem a patroa me apareceram mais, sendo certo que me pagaram todas as contas, nada me ficando a dever.


Já as tinha completamente varrido da memória, quando verifiquei pela leitura da carta estampada no Correio da Manhã, que o dia do benefício é sempre a véspera da ingratidão. E confesso desde aquele momento nutri sérias dúvidas quanto à integridade mental da mesma Felicidade; se é que efetivamente ela me aponta como o autor da sua desonra. E pensei também na força misteriosa e incalculável da sugestão, sobretudo quando se exerce sofre fracos seres femininos, desprovidos de toda e qualquer cultura intelectual.


Expostos assim os fatos, em toda a sua singeleza, pergunto qual o meu crime e que espécie de prova apresentam contra mim. A confissão da pretendida menor, quando ela exista, será suficiente elemento de convicção? Se se disser que sim, replicarei que pode amanhã qualquer outra pessoa ser vítima também da mesma infame exploração.


Era o que me oferecia dizer no presente artigo, em consideração aos altos poderes do meu Estado e ao público em geral. Não tornarei à imprensa. Segundo informa o Correio da Manhã, as autoridades judiciárias vão providenciar sobre o caso, e só me resta aguardar serenamente a decisão da Justiça. Acrescentarei que, para não embaraçar as pesquisas policiais, espontaneamente passei o exercício da delegacia ao meu substituto legal.


Inquiram testemunhas, esmerilhem fatos, abram sobre eles a mais rigorosa sindicância, e a minha consciência brilhará com a irrefutabilidade do sol. Em toda essa vergonhosa história só existe uma verdadeira vítima, que sou eu. Sim, sou vítima da intriga política, levada ao seu auge, ao expoente de seu furor. Aqueles que visitam atualmente Friburgo sabem muito bem que não exagero... [trema dele]


O ódio partidário corrido, expulso de outras plagas, veio asilar-se nesta cidade, veio agitar as outroras tranquilas montanhas da Suíça brasileira. É ele que manda mentirosamente escrever nos jornais do Rio de Janeiro que as ruas friburguenses estão cheias de capangas, aliciados por mim. É ele que me envolve nas suas malhas, e não duvida infamar um cidadão honrado, nascido em Friburgo, aqui vivendo, aqui prosperando, casado e pai de muitos filhos e pertencendo a uma das mais antigas e estimadas famílias do lugar!


Não fosse eu o delegado de polícia deste município, não tivesse amigos devotados em todas as classes sociais, não gozasse de influência, legitimamente adquirida em muitos anos de prática do bem, não houvesse, sobretudo, hipotecado o meu franco e leal apoio ao governo fluminense, e outro teria sido provavelmente o nome escolhido para figurar agora nas correspondências dos jornais, atado ao posto da difamação.


O meu, quando nessas correspondências aparecesse, estaria acompanhado de bênçãos e[ilegível o restante da frase].


Terminado, dirijo um apelo às autoridades judiciárias para que cumpram rigorosamente o seu dever. Nada temo. A minha consciência está limpa de qualquer mancha ou culpa. Sou o primeiro a desejar e a pedir que se faça sobre o caso a mais completa luz".


Alberto Braune.


Friburgo, 15 de agosto de 1905.

(Jornal do Commercio, Seção Publicações a Pedido, Alberto Braune ao Público, 16 de agosto de 1905).


Como vimos no seu discurso, Alberto Braune desqualifica a senhora Maria José Trannin por ser mulher, e consequentemente fácil de ser manipulável pela oposição, desprovida de cultura intelectual, sem marido e roceira. Na sua avaliação não é um atributo de qualidade quem se dedica ao amanho da terra. Quanto a Felicidade Emmerich faz questão de destacar que era criada e não pupila, mulata, e coloca em dúvida a sua sanidade mental. Sugere um comportamento promíscuo da moça alegando que andava desacompanhada e pernoitava ora em casa de uns, ora em casa de outros. A desqualificação da vítima é uma das retóricas mais usuais nos delitos contra a honra. O jornalista Bricio Filho tecendo comentários sobre a defesa de Alberto Braune fez-lhe severas críticas por se referir à sra. Trannin como inculta, ignorante, rude, habitante do sertão e roceira. Repreende-o por colocar o sertanejo, o campônio e o roceiro como não merecedor de fé pública. Recrimina ainda o fato de Alberto Braune não respeitar a honra de Felicidade em razão de sua idade, nuances da pele, e finalmente por sua classe social.


“O farmacêutico Alberto Henrique Braune, apontado como autor da desonra na pessoa de Felicidade Emmerich, pobre moça que em má hora teve a funesta lembrança de recorrer ao seu consultório médico, aberto sem o competente pagamento de licença e em contravenção da lei reguladora do exercício ilegal da medicina, estampou hoje na seção das Publicações a Pedido do Jornal do Commercio, um longo e desastroso artigo muito de acordo com a orientação especulativa da época em que procura defender-se das graves acusações que contra o mesmo pesam, partidas até de círculos onde o seu nome tem recebido afagos, entusiasmos e aclamações. Na extensa publicação registrada nas colunas livres do mencionado órgão o infeliz justificante, em linguagem talvez emprestada, a julgar por suas produções anteriores, figurou tão inepta e alvarmente, tão desajeitada e embaraçadamente, que a sua frouxa defesa se transformou em formidável acusação, em prova irrefragável e indestrutível da sua ação criminosa.


Não teria que aparecer na imprensa se o herói desta negra história se limitasse ao trabalho da demonstração de sua inocência, buscando embora os processos e recursos já demasiadamente sovados nas crônicas sobre os crimes e os delinquentes.


Se o homem das drogas e do bisturi de cirurgião espontâneo não tivesse ido além do propósito de apresentar a denunciante d. Maria José Trannin como a inculta, mulher ignorante e rude, habitante do sertão, roceira fraca e muito sugestionável, fácil de ser convertida em dócil instrumento de maquinações, eu não estaria na obrigação de falar ao público, apesar de saber que são contrárias as informações que correm relativamente à respeitável senhora, e consentiria que o acusado livremente se socorresse ao expediente vulgar de deslustrar as qualidades da acusadora, estribilho já bastante mastigado pelos culposos, e deixaria ao sertanejo, ao campônio, ao pessoal da roça a amarga sentença, lavrada por um delegado apanhado nas malhas de acusação tremebunda, de que não merece fé a palavra dessa casta de gente quando em protesto contra o assalto planejado e executado contra o lar. Se o subscritor do artigo que motiva estas linhas não se abalançasse a editar mais do que a declaração de que a vítima não é menor, mas oscila pelos 26 anos de idade, não é branca, mas mulata, não é pupila e sim criada, eu também não me sentiria compelido a escrever alguma coisa sobre o assunto, ficando cada um com a faculdade de apreciar e esmerilhar essa excelente doutrina que entrega às condições da honra à dependência da idade, aquilata da solidez da virgindade pelas nuances da pele, pela sua maior ou menor pigmentação, e avalia do grau de respeito devido à virgem pela sua posição debaixo de um teto como pupila ou doméstica, isto no proclamado regime de igualdade de todos perante a lei.


Se o operoso curandeiro não se afoitasse a levar a barra tão longe, se ficasse na externação das sérias dúvidas que nutre quanto à integridade mental da pobre Felicidade, eu igualmente não sairia a campo, e entregaria aos argutos a tarefa de estranhar que durante um demorado tratamento, feito por um homem inteligente e com alguns conhecimentos da arte de curar – sou amigo da verdade – não fosse notada qualquer perturbação cerebral e não fosse para esse lado encaminhada ao menos uma parte do tratamento, e por cima de tudo não perturbaria os espíritos atilados na apreciação da cautela com que, uma vez rebentada a bomba, explodido o escândalo é aberta a porta para atirar para além da fronteira da loucura uma jovem mulher, preparando a situação para passar como produto da elaboração de uma alienada tudo quanto em público ou em juízo possa pela desvirginada ser articulado contra o fator de sua desonra, de sua infelicidade, de sua miséria e de sua desgraça. Se ainda o protagonista deste caso pungente houvesse de um modo geral, sem especificações e sem designações, considerado o ruído em torno do acontecimento como resultado da exploração da parte dos seus adversários políticos, banal escapatória já frequentes vezes adotada, eu não me julgaria forçado a recorrer à imprensa, confiante no julgamento da população friburguense, porque esta sabe – e com ela o articulista por experiência própria em tempo que longe não vai – que a oposição municipal de Friburgo não costuma explorar os fatos particulares, ligados à honra e integridade do lar. Como, porém, ao calor do desatino, confuso, atônito, superexcitado e mau(sic), o Sr. Alberto Braune teve a perversa lembrança de agarrar em meu nome, respeitado e digno, para no momento em que fala de exploração especular com ele em favor de sua precária situação, dando-me como o implacável inimigo, sem escrúpulos e sem considerações, tipo de ódios e rancores, que com fins políticos não se envergonha de levantar uma invenção infamante; como porém o farmacêutico levou desgraçadamente a audácia até esse ponto, aqui me acho na arena do jornalismo, com a severidade de quem combate com segurança, certo de contender com lealdade e correção, pesaroso embora por saber que as indeclináveis exigências da defesa vão implacavelmente aumentar a aflição ao aflito.


Do modo porque o caso foi explorado, pela oposição e pelo correspondente do Correio da Manhã, tal como afirma em seu desconjuntado artigo, o cidadão incriminado, fácil é inferir, facílimo é concluir, acompanhando a sucinta e singela explanação em seguida formulada. Publica-se às quintas-feiras o Correio Popular, folha do partido oposicionista chefiado pelo Dr. Modesto de Mello, ilustre deputado estadual. O acontecimento a que está vinculado o delegado de polícia deu-se em princípio da semana passada, e aquele jornal, distribuído a 10 do corrente, de tudo perfeitamente informado, como a cidade inteira, não imprimiu uma simples notícia referente ao acontecido. Ao jornalismo do Rio de janeiro coube o início da divulgação do sucedido, e o primeiro a atirar o ato escandaloso ao domínio da publicidade foi A Tribuna que, em frases candentes, repassadas de indignação, vibrantes no influxo da justiça, exigiu em nome da honra ofendida a intervenção das autoridades competentes.


O Correio da Manhã só no dia imediato, como outros jornais da capital da República, informou os seus leitores do ocorrido, limitando-se, sem um comento, sem uma apreciação, sem o menor adendo, a inserir textualmente a representação que ao dr. Chefe de Polícia do Estado do Rio dirigira a queixosa, depois de haver impetrado justiça ao Promotor Público. Da imprensa local o primeiro a comentar o atentado foi O Friburguense, periódico sem feição política, sem ligação com qualquer dos dois partidos em atividade no município. Ele o mais antigo de todos, ele o conhecido decano, só tem até agora produzido expressões elogiosas ao sr. Alberto Braune, sendo, portanto, insuspeitíssimo na hipótese. Nunca um órgão de publicidade elevou mais um concidadão. Ninguém mais o enalteceu, ninguém o festejou melhor. Por ocasião de seu aniversário natalício, lá veio o retrato em página de honra, com minuciosa biografia traçada com carinho e dedicação. Entretanto, o Friburguense, em seu número de 13 do andante, em um editorial sob sugestivo título de “Desonra”, assim se exprimiu: São tão gravíssimos e deprimentes da honra e do bom nome de um homem de bem os fatos narrados por alguns jornais da capital federal contra o Sr. Alberto Henrique Braune, delegado de polícia desta cidade, fatos referidos também pelo público friburguense, que sua senhoria não pode deixar de apresentar uma defesa satisfatória e completa que o lave da mancha do crime que lhe é atribuído.


Amanhã continuarei.


Bricio Filho.


Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1905.

(Correio da Manhã, Secção Livre Friburgo Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1905)


Alberto Braune tomou providencias para que o caso tivesse um desfecho rápido, pois a sua mãe d. Maria Dulce Braune adoecera gravemente. Era proprietária de um prestigiado colégio de moças, o Colégio Braune. No entanto a educadora falece em 26 de outubro. Alberto Braune entregara neste mesmo mês ao jornal O Fluminense uma carta de Felicidade Emmerich em que ela nega as acusações feitas ao farmacêutico. Segundo ele era uma declaração lacônica e simples, mas de uma eloquência esmagadora. Destaca que recebeu com grande surpresa a carta de Felicidade Emmerich onde a moça afirma ter sido obrigada a mentir.


“Sr. Alberto Braune. Venho lhe pedir que me desculpe ter sido tão bem tratada pelo sr. e depois ter inventado uma porção de coisas; que o sr. tinha-me feito mal, foi o dr. Bijú promotor que fez a carta para d. Maria José assinar e eu não queria por ser tudo mentira; mas depois quando fui na polícia obedeci porque o dr. Bijú me falou que se não falasse aquelas mentiras de abortos e defloramentos, dizendo que era o senhor, que eu ia presa. Não tenho culpa dessas coisas, tudo é falsidade. Felicidade Emmerich". (O Fluminense, seção O Caso Braune,18 de outubro de 1905)


Se considerarmos o nível de violência que grassava na política local, bem como o prestígio social do acusado e de sua família, tudo indica que a carta escrita por Felicidade teria sido obtida por meio coercitivo, não obstante ela o negar textualmente. Em razão da juntada da declaração de falsa imputação criminosa o processo foi arquivado. O episódio da desonra de Felicidade revela um momento de nossa história em que tanto o judiciário como a instituição policial eram indicações políticas dos presidentes(hoje governadores) do Estado. Em razão disto, se o cidadão comungasse da mesma cartilha política do delegado, do promotor ou do juiz de direito obteria mercê em suas pretensões. O farmacêutico ficou conhecido na cidade por sua generosidade em dar remédios gratuitos aos pobres. Tudo leva a crer que foi a partir do caso de desonra de sua paciente que o farmacêutico toma a postura de homem caridoso, objetivando restituir a estima junto à população friburguense. Alberto Braune faleceu em 05 de maio de 1929 e dois anos após a sua morte, em 1931, uma estátua foi erigida na Praça 15 de Novembro, hoje Getúlio Vargas, em sua homenagem. Possivelmente foi uma tentativa de seus pares de reabilitação de sua imagem. Consultando o Wikipédia me surpreendi que a Rua General Argolo, homenagem a um combatente da Guerra do Paraguai, foi trocada para Avenida Alberto Braune em dia 30 de julho de 1928, no ano anterior a sua morte. Geralmente estas homenagens são após a morte o que mais uma vez leva a crer que havia um esforço hercúleo por parte das elites de reabilitação da imagem do farmacêutico. Quanto aos Trannin sabemos que é uma família única que imigrou para o Brasil, de origem francesa. Foram em dado momento proprietários do lindo palacete de 1890 na Ponte da Saudade, valioso prédio histórico preservado até hoje e adquirido por uma empresa de lingerie. Felicidade Emmerich teve o seu bebê. O historiador Edson Lisboa teve acesso em meados dos anos 80 no outrora Pró Memória, atual Fundação D. João VI, a um diário de memórias intitulado "Diário de Trannin". De acordo com Lisboa, além de descrever os fatos da vida do autor, no qual não se lembra o nome, possui igualmente anotações sobre o cotidiano da cidade. O historiador se recorda de um trecho que lhe chamou a atenção. O autor do diário fez a seguinte anotação: "Hoje nasceu o filho bastardo de Alberto Braune".



120 visualizações0 comentário

Σχόλια


bottom of page