Uma menina curiosa, nos seus doze anos de idade, sob um olhar perscrutador, observava atenta as atividades de sua avó. Não era para menos. O local em que sua avó trabalhava chamava a atenção. Estava sempre repleto de pessoas, havia muito movimento, gente de todo tipo, de marinheiros a estudantes, de homens distintos a outsiders e uma vitrola sempre a ecoar enchendo o ambiente de música e alegria. Quando se aproximava da “casa” durante o dia, as moças-damas a evitavam. Ordens de Dona Sofia, ninguém poderia se aproximar e falar com sua neta. Mas a curiosa menina transgredia as fronteiras e penetrava neste espaço proibido, nos legando em suas memórias a atmosfera e o ambiente do que ficou conhecido em Friburgo como: “O Beco da Sofia” ou “O Beco das Oficinas”, porque na rua ficavam também as oficinas da companhia de trem. São as memórias de Wilma Villaça.
Sofia de Carvalho Villaça, ou Dona Sofia, como era conhecida, nasceu em Riograndina, em 17 de setembro de 1899, falecendo em 31 de maio de 1976. Uma negra muito bonita, elegante, que tinha paixão pelos bons perfumes e pelo jogo “dos bichos”. Foi casada com Galdino Neves Villaça, originário de Minas Gerais, com quem teve vários filhos. Viveram muitos anos em Riograndina numa fazenda onde plantavam café, até que uma dificuldade financeira os levou a vender a fazenda e se mudarem para Friburgo para recomeçar a vida. Na cidade, Sofia fazia salgados e doces “para fora” e Galdino biscates como jardineiro, mas veio uma crise no casamento e o casal se separou. Sofia era reconhecida como uma mulher de personalidade forte, autoritária, mas extremamente humana e sociável, e foi valendo-se destas características e de uma rede de relações, que no início da década de quarenta abriu em Friburgo uma “casa de moças-damas” que ficou também conhecida como a Casa da Sofia. A “casa” localizava-se na subida do cemitério, na Rua Gonçalves Dias, atrás do atual Cadima Shopping. Sofia não escolheu um local para montar tal estabelecimento nos arrabaldes da cidade, escondido, marginal e dissimulado. Ficava exatamente em frente à residência em que vivia com os seus filhos, todos bem criados e bem educados. Era uma extensão de seu lar, e daí talvez a atmosfera familiar que seu estabelecimento possuiu durante os mais de vinte anos em que existiu.
Mas a “Casa da Sofia” incomodava à vizinhança? Wilma afirma que não e justifica-se. Sofia ajudava a todos, fazia partos, comprava remédios, era conselheira, encaminhava em um emprego, já que era bem relacionada na cidade. Seu estabelecimento era frequentado pela elite local, mas também pela arraia miúda que para lá se dirigia. Quanto a estes últimos, antes de ir para a Sofia, um gole de cachaça no bar do Justino, na Alberto Braune, na “esquina do pecado” ou bar “Grito de Mocidade”, mas neste local só entravam negros. Brancos não eram admitidos.
Sofia não fazia qualquer distinção social. O que apenas ocorria, e que os distinguia financeiramente, era que os mais abastados “reservavam” suas favoritas e somente com eles passavam a se relacionar. Tudo acertado previamente com Dona Sofia e contabilizado. Foi Jorginho Abicalil, quem descreveu em suas crônicas, como freqüentador habitué do local, um interessante relato da Casa da Sofia. “.....Ah, Dona Sofia da gargalhada rouca! Da tosse, do Liberty Ovaes/ Da sua janela, fotografa a Leopoldina Railway, para receber seus reis/ que desejam gozar e viver./ São viajantes, caminhoneiros, H.T’s, marinheiros, fuzileiros navais/ todos reis, cada qual com uma menininha no colo/ e uma brahma casco escuro na mão,/ todos reis por uma noite de prazer./ E até os garotões metidos a sociais/ tudo gente de fino trato,/ lá estão no beco: escondidinhos em seu recato./ Estão todos vivendo o hoje das emoções,/ da mais antiga das profissões/ Todos enlevados pelos encantos das meninas/que ensinam prazeres do sexo./ Sexo bom, bem iniciado,/para nos deixar galantemente aliviados...”
A Casa da Sofia não recebia qualquer moça-dama. Verificava sua origem e antecedentes, sendo que todas elas vinham na maior parte de cidades do norte fluminense, a exemplo de Itaperuna. A Casa da Sofia era um casarão onde havia aproximadamente quinze quartos e um extenso salão, espaço comum para se ouvir vitrola, beber e dançar com as moças-damas. Cada uma delas tinha o seu quarto, alimentação garantida feita por uma cozinheira e serviço médico, onde pagavam, por isso, uma espécie de pensão. Nos programas feitos pelas moças-damas, Sofia recebia um percentual através de um sistema de fichas. Mulher de tino comercial tinha um médico fazia exames periódicos nas moças-damas, uma gerente e uma “caixinha” para a polícia não incomodar e ainda dar segurança, quando havia desordem provocada por baderneiros. O movimento iniciava por volta das 17:00 horas e terminava madrugada adentro. Somente os “rapazes da fundação” frequentavam à tarde a “Casa da Sofia”, já que tinham que pegar o ônibus para a “subida da Fundação”. Frequentavam ainda os rapazes do H.T., como eram conhecidos na cidade. A sigla H.T., significava hospital dos tuberculosos. Eram marinheiros e fuzileiros tuberculosos que ficavam internados no Sanatório Naval. Certamente Dona Sofia só deixava que frequentassem aqueles já convalescidos, pois sempre foi muito cuidadosa com a salubridade de seu estabelecimento. Dr. Feliciano Costa, médico do Sanatório Naval, era quem dava assistência à Casa da Sofia cuidando das meninas e autorizando os H.T´s que poderiam frequentar o estabelecimento.
Possivelmente para atender a representação que fazia à época das cortesãs, Sofia recebia na maioria apenas moças brancas e “bem claras”, do tipo europeu. Não que houvesse preconceito por parte dela, mas o estereótipo da cortesã ainda vinha do imaginário masculino do final do século XIX, onde eram cortesãs as francesas, as polacas e as judias. As moças-damas trajavam vestidos longos, como os de baile, relembra Wilma, com uma maquiagem bem destacada e cabelos bem penteados, no estilo pin-up. Mas para sair à rua durante o dia, Dona Sofia exigia recato. Tinham que usar indumentária simples, sem maquiagem e terem um comportamento discreto.
Dona Sofia administrava e recebia os clientes, juntamente com sua gerente. Altiva e de olhos agudos, mulher de porte, corpo de sereia, o salto alto erguia-lhe ainda mais a fronte empinada. Impunha e ordenava com energia como no “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Ao som de Vicente Celestino e Gilda de Abreu, dançava-se à noite inteira. Seu estabelecimento estava sempre lotado e isto porque a Casa de Sofia, mais do que um espaço de prazer, era um lugar de sociabilidade. O rendez-vous da cidade. Muitos iam até lá somente para se divertir, “just for fun”, como dizem os americanos. Não buscavam somente o prazer carnal, mas os amigos que lá também frequentavam ou quem sabe, em busca de um conselho e uma boa prosa com Dona Sofia. Foi da Casa de Sofia que muitos casamentos saíram. Muitos homens tiraram as moças-damas “da vida” e se casaram com elas. Sofia batizou muitas crianças destes enlaces. Os já casados “botavam casa”, vivendo amancebados com suas favoritas, tirando-lhes “da vida”.
Por fim, e o que mais impressiona nas memórias de Wilma Villaça, foi a tolerância da sociedade friburguense em relação à Casa da Sofia. Percebe-se que seu estabelecimento tinha uma função social. Afinal, vivíamos em uma época em que as moças casavam-se virgens e seus noivos “aliviavam-se” nestes locais. Quanto aos casados, aquela famosa desculpa de que as mulheres da vida, bruaca, bucho, bagaxa, cróia, cocote, fubana, frega, fuampa, jereba, quenga, marafona, murixaba, michê, marafaia, rongó, rameira, tronga, vulgívaga, zabaneira, zoina, andorinha, égua, gança, mariposa, loba, mulher errada, perdida, transviada, do mundo, pública, da rua, da rótula, da zona, do amor, de má nota, de ponta de rua, do fado e do fandango, serviam para práticas sexuais aos quais não se podia fazer com a esposa. Mulher tolerada, daí a tolerância? O certo é que por onde Dona Sofia passasse além de ser respeitada, dava-se à ela uma deferência especial. O gerente de banco puxava a cadeira para ela sentar-se, recorda-se Wilma. A propósito, Wilma foi a única menina negra, à época, a matricular-se no tradicional e elitista Colégio Nossa Senhora das Dores. E o mais intrigante, é que já houve estabelecimentos deste tipo antes e depois da Casa da Sofia em Friburgo. Mas nenhum deles se perpetuou tanto na memória da cidade como a Casa de Sofia, que fechou em 1962. Talvez a resposta esteja em um dos seus habitués, Jorginho Abicalil: um local de “sacerdócio do prazer e da virtude”.
Entrevista realizada com Wilma Villaça em 05/12/2009 e Crônicas de Jorginho Abicalil.
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