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Foto do escritorJanaína Botelho

GERAÇÃO BENDITA. É ISSO AÍ BICHO!



Uma comunidade hippie se instala em um sítio em Vargem Alta, em Nova Friburgo, no final da década de sessenta, do século vinte. Isso deu o que falar na cidade. Em dois artigos vamos narrar o que representou esse acontecimento e sobre os seus principais atores. Assim como os outros grupos da contracultura, o movimento hippie tem seus primeiros registros nos Estados Unidos entre os anos 50 e 60, do século passado. A contracultura designava um conjunto de manifestações culturais que se opunha à situação vigente. Os precursores dos hippies foram os beatniks formado em sua maioria por poetas boêmios como Jack Kerouac, William Burroughs e Allen Ginsberg que nos anos 50, criaram um novo estilo de contestação. Já os hippies eram em sua maioria jovens das classes altas e médias dos centros urbanos. Adotavam a vida em comunidade fugindo das regras de comportamento estabelecidas e buscando a construção de uma sociedade alternativa. A liberdade, o psicodelismo e a pacifismo eram os seus paradigmas. No final dos anos 60, mesmo sendo o pai proprietário de um dos maiores hotéis da cidade, o Hotel Sans Souci, Karl Kohler, conhecido como Carlinhos, se muda para o sítio Quiabo´s, de propriedade da família, vendendo os produtos de sua lavoura. O sítio Quiabo´s era localizado em Vargem Alta, no distrito de São Pedro da Serra. Curiosamente o pai de Carlinhos, o empresário Karl Wilhelm Kholer, nascido em 1902, em Freiburg, na Alemanha era conhecido por promover reuniões do Partido Nazista na Fazenda Bela Vista, de sua propriedade.


Com o tempo foram chegando outros adeptos da filosofia hippie e se instalando nas três casas de colonos do sítio Quiabo´s. Eram aproximadamente setenta e formavam uma das primeiras comunidades hippies no Brasil. Todo esse acontecimento deu origem ao filme que se tornou um cult na historiografia do cinema nacional, Geração Bendita. Para sobreviver plantavam flores de corte, como rosas e palmas e faziam artesanato vendendo no centro de Nova Friburgo. Um dos hippies da comunidade Quiabo´s era Carlos Roberto Bini, friburguense, 29 anos, que havia abandonado a carreira de advogado para viver nessa comunidade. Carlos Bini, que já havia realizado dois curtas-metragens, Cristo Afogado e Erotismo, começou a fazer registros filmando o cotidiano no sítio. A partir dessa iniciativa, Kohler teve a ideia de produzir um longa-metragem. O roteiro foi autobiográfico da vida de Bini contando a história de um advogado que resolve abandonar a carreira e se juntar à comunidade hippie. O protagonista vive um romance proibido com uma moça de classe média e de família tradicional que estava noiva. Com muita dose de humor os hippies são perseguidos pelas insistentes catequeses de um pastor da igreja Batista. A produção do filme é de Karl Kohler e Carlos Doady e a direção de Carlos Bini. O francês Fritz Meldy Lucien Mellinger, ex-assistente do cineasta francês Claude Deluxe foi contratado como diretor de fotografia. O filme começou a ser rodado em agosto de 1970, sendo o elenco a comunidade hippie Quiabo's interpretando o seu próprio estilo de vida. Além deles, contou com a participação secundária de friburguenses como Augusto Spinelli, os irmãos João e Renato Côrtes Teixeira, Carlos Rosemberg, José Carlos Thurler Ruiz, Carlinhos Guimarães e Paulo Carvalho, pessoas que mais tarde seriam muito conhecidas e respeitadas na sociedade friburguense. Geração Bendita além de ser um relato sobre o estilo de vida hippie aborda a sua difícil relação com a sociedade friburguense. O filme é documental, daí o seu inestimável valor, pois mostra fielmente a cultura hippie da época. No entanto, as filmagens começaram a incomodar a elite friburguense. Três meses depois de iniciadas, o delegado Amil Nei Richard prende os participantes durante uma cena realizada no centro da cidade. Determinou que fossem cortados os cabelos longos dos homens e a barba escanhoada. Proibiu-lhes igualmente de portar roupas coloridas e exóticas. Os hippies que não fossem friburguenses foram obrigados a deixar a cidade dentro de cinco dias.


Houve protestos da população contra a arbitrariedade do delegado. Amil Richard declarou temer que os hippies estivessem aliciando jovens friburguenses para a sua comunidade e ordenou a sua prisão “para defender a cidade de tipos exóticos, sem sexo definido que estão infestando a região”. Os diretores e produtores foram igualmente presos. De acordo com a matéria publicada no jornal O Dia, o delegado não admitia jovens cabeludos portando trajes exóticos, falta de asseio e com vaidades próprias do sexo feminino como o uso de cordões e pulseiras. Ainda segundo ele, a apologia ao amor livre e a promiscuidade era incompatível com as tradições e valores cristãos da população friburguense.


A comunidade de hippies Quiabo’s ficou aproximadamente de três anos em Nova Friburgo. Drogas como LSD e maconha eram utilizadas pelos hippies, em geral, para ampliar o nível de consciência e proporcionar uma experiência mística. Carlos Doady nos informa que alguém lhe perguntou sobre a utilização de drogas na comunidade Quiabo’s. Ele teria respondido “Raramente!”. “Raramente usavam?”, indagou a pessoa. “Raramente faltava!”, ele respondeu. Poucos meses após a prisão dos hippies, o delegado Rechaid foi transferido da cidade em consequência da repercussão negativa que teve o episódio. Na ocasião, a mídia friburguense se calou conforme nos informa as pesquisadoras Debora Breder e Thamyres Saldanha Martins no artigo “É isso aí, bicho, narrativas sobre o filme Geração Bendita no Jornal A Voz da Serra durante a ditadura militar”. O jornalista Pedro Paulo Cúrio, em um artigo intitulado “Na tonga da mironga do cabuletê!” criticou os hippies chamando-os de gang do tóxico, salafrários e apoiava a atuação do delegado Amil Rechaid ao prendê-los e expulsá-los da cidade. Após esse incidente, as filmagens de Geração Bendita foram retomadas em Santo Antônio de Pádua e Itaocara, mas tiveram igualmente problemas com a polícia.


Em outubro de 1971, quando o filme foi apresentado a Divisão de Censura de Diversões Públicas,mais de 40 minutos foram censurados, havendo necessidade de rodar outras cenas para substituir os cortes, mas gerou problema de continuidade. Analisando o filme hoje na íntegra, possivelmente foram cortadas as cenas de nudez e de consumo de drogas. Como novos cortes foram realizados os produtores alteraram o nome do filme de Geração Bendita para É Isso Aí, Bicho! com o intuito de burlar a censura. Apenas em janeiro de 1973, o filme foi finalmente liberado para exibição nos cinemas. Lembrando que estávamos em plena ditadura militar. Porém, poucos meses depois de exibido o filme foi novamente censurado e as cópias recolhidas de todos os cinemas pela Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal. Karl Kohler e Carlos Doady foram presos e obrigados a assinar um Termo de Confissão no DPOS, a polícia política da época. Expulsos de Nova Friburgo, a um grupo da comunidade Quiabo´s foi Barra do Sana, na Serra de Macaé e outro para Visconde de Mauá. Anos depois, o filme foi restaurado por iniciativa de Carlos Doady contando com a colaboração de Osvandil Silveira Quimas e Bruno de Oliveira, com a conversão da película para o formato digital, telecinagem, retoques de coloração, melhoria do áudio e remasterização. Foram resgatadas todas as cenas que haviam sido cortadas, reintegrando-as ao filme.


Uma grande preciosidade de Geração Bendita é a trilha sonora da banda Spectrum, composta por integrantes da própria comunidade Quiabo´s e por friburguenses. Segundo Bini, as músicas eram compostas durante as gravações, atendendo às necessidades das cenas e dos personagens. O disco foi lançado no mesmo ano que o filme. O rock psicodélico do grupo é o estilo musical característico do movimento hippie. Atualmente, o long play em vinil da banda é disputado por colecionadores do mundo inteiro, chegando a valores astronômicos, e ocupa os primeiros lugares nas want lists de raridades psicodélicas. Geração Bendita não foi o primeiro filme a abordar a temática da contracultura. “Meteorango Kid, o herói intergaláctico”, lançado no ano de 1969, já havia abordado a temática de uma comunidade hippie. O filme tem imenso valor por ter documentado o cotidiano de mais uma comunidade hippie no país. E como dito antes, uma trilha sonora de inestimável valor. Um bom trabalho sobre o tema pode ser encontrado na dissertação de mestrado de Igor Fernandes Pinheiro, “Não fale com paredes, contracultura e psicodelia no Brasil”. Geração Bendita entrou na lista dos filmes cult, fazendo parte da historiografia do cinema nacional, estando disponível no youtube.



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