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NUM VÔ FAZÊ A JANTA: O DESTINO DE EX-ESCRAVOS



A data era 13 de maio de 1888, dia da libertação dos escravos. Era o fim de três séculos e meio de escravidão no Brasil. Na vila de Nova Friburgo era realizada uma sessão de júri, no qual participavam vários fazendeiros da região, inclusive da freguesia de São José do Ribeirão. Essa freguesia era a mais próspera do termo de Nova Friburgo, grande produtora de café e consequentemente com o maior plantel de escravos. Ecoa célere na vila a notícia da libertação dos escravos. Uma “pretinha” saiu esbaforida de uma residência gritando: “Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta!” Na sala do júri, os fazendeiros não puderam dissimular o seu aborrecimento. Como permaneciam vários dias na vila até terminar o último julgamento, o juiz percebendo a gravidade da situação, autorizou que os fazendeiros retornassem às suas propriedades. Nas estradas da freguesia de São José do Ribeirão, durante vários dias, muitos ex-escravos perambulavam sem destino, cantarolando, e alguns chegaram a invadir algumas propriedades. Um desses fazendeiros ao chegar à sua fazenda ainda encontrou os seus escravos na labuta, sem conhecimento da grande “novidade”. Reuniu-os e deu-lhes a notícia de que estavam livres. No mesmo momento, saíram da fazenda e desapareceram. Por que teriam todos os escravos dessa fazenda resolvido abandoná-la? Trauma devido aos maus tratos? Vontade de partir para não sei onde. Sem vínculos familiares, sem relações de amizade, partir para onde? No primeiro momento, o sabor da liberdade como no grito da liberta “Num vô fazê a janta”. Fica a seguinte indagação: Não poderiam esses ex-escravos ter retornado às fazendas de origem e buscado novas relações de trabalho? Não poderiam ter se incorporado ao regime de parceria como meeiros ou a terça, ou trabalhado como “jornaleiros” (por jornada) ou como “camaradas”? Parece-nos que a grande maioria não retornou.


Os distritos e as freguesias da magna Cantagalo ganham autonomia logo no início do regime republicano, surgindo novos municípios. Os fazendeiros dessa região passam a contratar colonos com o fim da escravidão. Sabe-se que cerca de 800 espanhóis se deslocaram direto do porto do Rio de Janeiro para Cantagalo. Algumas fazendas empregaram italianos. O coronel Cornélio de Souza Lima(1849-1941), fazendeiro de São Sebastião do Alto, freguesia que já pertenceu a Cantagalo, inicia o processo de cooptar colonos italianos para aquela região. Foi considerado o “pai” da imigração italiana da região serrana fluminense. E a surge uma nova questão: Teria a contratação desses colonos europeus dificultado o reingresso dos ex-escravos às suas fazendas de origem? Ou teria havia outro motivo para que não retornassem? Um interessante artigo publicado no periódico Nova Pátria, de Cantagalo, um ano após a abolição da escravidão, traz uma possível explicação a essa última questão. O presente artigo relata que corria o boato em Cantagalo e em diversos pontos do Estado, de que os libertos, por uma má interpretação do atual estado político, julgavam que iam ser “reescravisados”. Declarava ser conveniente que os senhores proprietários de estabelecimentos agrícolas procurassem, por meios suasórios, convencer os libertos do contrário. O periódico chamava a atenção de que os principais interessados na manutenção da harmonia eram os “exploradores do solo” e portanto, deveriam empregar resolutos esforços no sentido de evitar qualquer perturbação na marcha dos trabalhos agrícolas. Destacava que as instituições republicanas não se coadunam com a escravidão e que a autoridade policial já tomara as providências que o caso exigia. A seguir, transcreve uma circular da Secretaria da Polícia do Estado do Rio de Janeiro, publicada em 27 de novembro de 1889, com o seguinte teor: “Propalando espíritos mal intencionados que o novo regime de governo pode trazer prejuízo à liberdade dos indivíduos que a adquiriram em virtude da lei 3.353 de 23 de maio do ano próximo passado, recomendo-vos que façais constar por editais afixados em todas as freguesias do vosso termo e por intermédio dos respectivos subdelegados, que os libertos continuarão a gozar dos direitos que lhes foram conferidos pela mesma lei e que a esse respeito nenhuma dúvida existe no animo do governo Provisório da República e deste Estado. Saúde e Fraternidade. O chefe de polícia. Godofredo Xavier da Cunha. (Cantagalo, periódico Nova Pátria, 01 de dezembro de 1889, Ano I, n°: 02, páginas 01 e 02.) Depois da catarse dos primeiros momentos de liberdade, muitos poderiam ter retornado às fazendas em que foram escravos buscando novas relações de trabalho. Mas não o fizeram. Medo do retorno da escravidão devido a mudança do regime de governo? Competição com os colonos europeus? A historiografia há muito analisa as dificuldades de o negro recém-liberto pela abolição se inserir no mercado de trabalho. Na matéria seguinte apresentaremos algumas recolhas de situações de libertos nos primeiros decênios do século XX, em Nova Friburgo, e procurar localizar o cotidiano desses indivíduos após a abolição da escravidão.


Uma das razões pode ter sido o medo de um retrocesso político fazendo com que retornassem ao status quo ante de escravidão. A mudança do regime monárquico, que lhes outorgara a liberdade, para o republicano, parece ter provocado o fantasma da escravidão. Manteria o novo governo republicano a abolição da escravidão? Parece ter surgido essa dúvida e o boato se espalhou. A Secretaria de Polícia do Estado do Rio de Janeiro emitiu circular em novembro de 1889, declarando que os libertos continuariam a gozar dos direitos que lhes foram conferidos pela lei áurea para dissipar a boataria. O periódico de Cantagalo, “Nova Pátria”, em dezembro do mesmo ano, divulgou que no município havia o boato de que os libertos, por uma má interpretação do regime republicano, julgavam que iriam ser “reescravisados”. Fazia-se um apelo aos proprietários de estabelecimentos agrícolas para que procurassem convencer os libertos do contrário. Por fim, esclarecia que as instituições republicanas não se coadunavam com a escravidão. Essa fuga desesperada para não se sabe onde pode ter prejudicado a transição das relações de trabalho de escravos para colonos. Na vila de Nova Friburgo uma “pretinha” saiu esbaforida gritando: “Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta!”


Como meeiros, parceiros ou camaradas, essas foram as relações de trabalho estabelecidas entre os fazendeiros e os colonos europeus, que imigraram para o centro-norte fluminense no final do século 19, para substituir o trabalho escravo. Gioconda Lozada, em “Presença Negra”, jogou luz através de algumas entrevistas que realizou com descendentes de ex-escravos sua incorporação ao mercado de trabalho. De acordo com as entrevistas realizadas por Lozada, os libertos tiveram dificuldade em se estabelecer em fazendas onde havia a presença de colonos europeus. Parece-nos que esses colonos “terceirizavam” o serviço da lavoura empregando os libertos. Esse savoir faire dos libertos em relação a lavoura nacional pode ter sido aproveitado pelos colonos europeus que empregavam seus serviços como “camaradas”. Há o registro de que ex-escravos trabalharam “pegando empreitada com os italianos”. Em Duas Barras, libertos conseguiram trabalho como colonos, recebendo moradia. A colheita da cana de açúcar e do café era dividida com o fazendeiro. Se quisesse plantar de “meia”, o fazendeiro dava a terra já “capinada”. Se o liberto quisesse capinar, era a “terça”. Plantava-se preferencialmente café e cana de açúcar, mas havia igualmente lavoura de arroz, feijão, milho, alho e amendoim. O fazendeiro ainda adquiria a parte do liberto da cana de açúcar e do café. Algumas relações de trabalho eram na base da corveia: trabalhavam em suas próprias roças e “roçavam” três dias para o patrão. As mulheres costuravam, passavam e engomavam, completando a renda familiar. As crianças derrubavam e sopravam o café. Seu Joanico, de Varginha, foi um raro exemplo de afrodescendente proprietário de uma porção de terra. Seu avô fora feitor de uma fazenda e conseguiu uma parcela considerável de terras. No fogão à lenha, o feijão, o arroz, a carne e os legumes denotavam a prosperidade da família. A fração de terra que herdou foi cultivada por ele. Vendia aipim, batata doce, milho, feijão, ovos e galinhas no centro de Nova Friburgo. Um outro exemplo foi de um afrodescendente ferroviário. A escravidão havia sido abolida há apenas 12 anos e um descendente de ex-escravo conseguiu realizar o seu sonho: trabalhar na rede ferroviária. Inicialmente como limpador de locomotiva, depois como foguista e finalmente como maquinista na linha de Porto Novo a Nova Friburgo. Não havia horário certo de trabalho, era de cinco da manhã às nove da noite, e não havia igualmente sábado ou domingo, chuva ou sol.


Percebe-se que ao longo dos anos, netos e bisnetos de ex-escravos vão se aproximando da urbs. No caso das mulheres trabalham como domésticas. Muitas vezes três gerações de mulheres trabalham no serviço doméstico para uma mesma família. Há referência de que verdureiros negros vendiam produtos de suas roças na cidade, ajudavam nas tachadas de goiabada ou na fabricação do polvilho. Os “negrinhos” vendiam roletes de sorvete em caixas de madeira com gelo, empregados por algumas senhoras friburguenses. Quando as indústrias se instalaram em Nova Friburgo, a partir de 1910, há indício de que afrodescendentes raramente eram admitidos nessas empresas. Depois da adequação e da sobrevivência dos libertos, pode-se afirmar que os bisnetos de ex-escravos já vão à escola, alcançando um novo status social. O problema da inserção do liberto no mercado de trabalho é ainda um campo incipiente de pesquisa. Todos esses dados são apenas recolhas de alguns registros que traz alguma luz sobre a trajetória de gerações de descendentes de ex-escravos.

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