A representação que se tem de Nova Friburgo é de uma cidade com uma tradição herdada de suíços e de europeus, de um modo geral, em razão da colonização e da imigração ocorrida do velho mundo para o Brasil durante o século 19. No entanto, Nova Friburgo não foi uma exceção e sua organização social foi pautada no eixo central entre senhores e escravos, chegando esses últimos a representar quase metade da população. Procuraremos demonstrar através de um processo judicial ocorrido em razão da morte de um capataz de uma fazenda, em uma freguesia de Nova Friburgo, como se desenrolavam as relações nas unidades de produção agrícolas no momento em que a escravidão sofria forte pressão da Inglaterra para a sua extinção. Em 1830, o café começa a despontar como importante produto de exportação do Brasil. A lavoura cafeeira da província fluminense prosperava e necessitava cada vez mais da mão de obra escrava. Nesse período, intensificou-se o tráfico interno e as províncias do norte tornaram-se grandes exportadoras de mão de obra escrava para as províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. As tensões entre os administradores das fazendas se intensifica já que os escravos do norte pareciam ter um comportamento diverso dos do sul. Algumas leis começaram a colocar entraves na aquisição de escravos comprados nas províncias do norte, notadamente de Pernambuco, uma vez que associavam esses escravos a violência contra administradores e feitores das fazendas, insurreições e formação de quilombos.
Nova Friburgo recebeu alguns desses escravos vindos do norte. Provenientes dos engenhos de açúcar, o choque com a organização do trabalho das fazendas de café na província fluminense ocorreria com frequência, acarretando fortes tensões sociais. Em algumas fazendas, os escravos possuíam pequenas roças e animais criação para a venda e ganhavam alguns trocados nos dias de descanso, trabalhando a “jornal”. Alguns administradores parecem ter desrespeitado essa prática costumeira, que os historiadores denominam de brecha camponesa. Os escravos vindos do norte queixavam-se dos horários das refeições, dos alimentos que lhes eram servidos, do tratamento cruel, com pancadas sem razão, e dos castigos rigorosos. Possuíamos um episódio bem documentado ocorrido em uma fazenda de Nova Friburgo que nos mostra esse nível de tensão. Mergulhar no processo judicial instaurado para se investigar o homicídio do ferreiro é conhecer as relações sociais entre senhores, agregados e escravos, envolvendo histórias de amor, ciúme, vingança, hierarquia e sociabilidade.
Em 1850, na Fazenda da Ponte das Tábuas, localizada no distrito de Conselheiro Paulino, ocorreu uma fuga de escravos terminou com a morte do ferreiro da fazenda. Na ocasião, Nova Friburgo contava com aproximadamente 37% da população formada por escravos. Diferentemente das outras fazendas, a Fazenda Ponte das Tábuas se dedicava a produção de alimentos como milho, feijão, abóbora, a manufatura de anil e a criação de gado bovino, porcos e galinhas. Pertencia ao Comendador Boaventura Ferreira de Maciel. Nessa história, um protagonista: o escravo Antônio Pernambuco. Com 28 anos de idade, solteiro, trabalhador da roça, estava na fazenda havia quatro anos quando ocorreu o crime. Fora nomeado feitor pelo administrador João Antônio quando chegara à fazenda. Era de sua confiança e os demais escravos o obedeciam e o respeitava como o “primeiro escravo” da fazenda, com superioridade sobre eles. Porém, Antônio Pernambuco foi destituído do cargo. O administrador colocou-o “em ferros” durante quatro meses, acusado de “ser arteiro”, roubo e da prática de feitiçaria.
Na realidade, aprendia com um escravo ia à fazenda a manipulação de remédios caseiros para curar as doenças que atacavam os cativos já que o administrador se recusava a tratar-lhes. Defendendo-se das acusações de roubo, Antônio Pernambuco declarou que na vila de Nova Friburgo não havia ninguém que o tivesse visto vender alguma coisa da fazenda, salvo as esteiras de palha que ele fabricava. Na realidade, era o administrador João Antônio quem roubava as coisas da fazenda, como animais, sacos de feijão e as vendia na vila, acusando os escravos e punindo-os rigorosamente. Porém, mesmo depois de destituído do posto de feitor, os parceiros continuaram estimando e obedecendo Antônio Pernambuco. Sua liderança era inquestionável e isso iria se refletir na fuga dos escravos.
A administração da disciplina no trabalho e os castigos na fazenda eram de responsabilidade do feitor, muitas vezes indicado pelo administrador. O feitor era geralmente um trabalhador livre, escravo ou liberto, encarregado de dar ritmo ao trabalho dos escravos e verificar se eles estavam executando as tarefas de forma adequada. Na fazenda Ponte das Tábuas era comum um escravo ser feito feitor, como fora Antônio Pernambuco, e o atual escravo-feitor tinha bom relacionamento com os demais escravos. Na fazenda Ponte das Tábuas a crueldade vinha da parte do administrador: João Antônio da Silva Ferreira. Português, administrador da fazenda desde junho de 1844, era um homem violento e tinha prazer em praticar sevícias contra os escravos. Um deles chegou a declarar não suportar o tratamento bárbaro do administrador. O proprietário da fazenda, o Comendador Boaventura Ferreira de Maciel pouco aparecia em seu domínio, deixando ao administrador a sua livre gestão. Vivia no centro da vila de Nova Friburgo ignorando os maus tratos aos seus escravos por parte de João Antônio. Certa feita, o administrador jogou uma criança escrava no chão e encheu-a de pancadas. Por causa de uma vaca que tinha sumido amarrara um escravo em um esteio e o surrara violentamente, aplicando-lhe golpes de faca na cabeça. Apoderava-se igualmente das roças de milho dos escravos e o seu índice de maldade não tinha limites. No entanto, foi o duplo homicídio dos escravos Basílio Angola e Inês que deixara a escravaria da fazenda cheia de terror, provocando a sua fuga.
Na morte de Inês, a escrava Maria do Rosário esteve envolvida. Ela teria dado um dinheiro roubado na “casa” a Basílio Angola, amancebado de Inês, para comprar sua carta de alforria junto ao seu senhor, o comendador Boaventura Ferreira Maciel. Quando o administrador João Antônio deu falta do dinheiro, Maria do Rosário culpou o casal Basílio e Inês pelo furto. João Antônio deu uma surra em Basílio Angola e o meteu no tronco. À noite, às escondidas, Inês foi soltar o seu amado. Ambos fugiram, mas foram pegos e duramente castigados. O escravo Basílio Angola tomou uma surra do administrador, levou pranchadas e cutiladas na cabeça com um facão, facadas nas costas e em seguida foi metido no tronco. NA madrugada do dia seguinte, quando o feitor-escravo foi tirar Basílio do tronco para, por ordem de administrador, aplicar-lhe mais açoites, encontrou-o morto. Inês foi igualmente duramente castigada. João Antônio surrou Inês com chicote e bacalhau, deu-lhe com palmatória nas solas dos pés, bateu com uma pedra sobre as suas costelas e enfim meteu-a em ferros. Após a surra, o administrador mandou que fosse aplicado molho de pimenta em suas feridas. Não resistiu às torturas e faleceu.
Havia outro escravo chamado Basílio na fazenda: um era amancebado de Inês, africano de Angola, e o outro, Basílio Crioulo, como era conhecido, que mantinha relações amorosas com a escrava Maria do Rosário, para ira do administrador João Antônio. O ciúme dele por Maria do Rosário foi a causa do assassinato do escravo Basílio Crioulo. Ao saber do caso, João Antônio logo procurou um pretextopara castigar o amante de Maria do Rosário. O administrador acusou Basílio Crioulo de roubo de um saco de feijão para vendê-lo na vila de Nova Friburgo. Mandou amarrá-lo em um esteio, surrou-o, deu-lhe estocadas com facão nas costelas e cutiladas na cabeça. Basílio Crioulo faleceu em razão desses ferimentos. A maldade de João Antônio parecia não ter limites e como o proprietário da fazenda mal aparecia, os escravos ficavam a mercê da crueldade administrador. Havia um clima de medo constante na fazenda Ponte das Tábuas.
Em razão disso, Antônio Pernambuco apareceu certo dia na roça onde os escravos trabalhavam, concitando-os à fuga: “Meus parceiros, vamos fugir, porque o senhor João Antônio quer dar cabo de nós todos”. Enquanto dizia isso, exibia um braço inchado por pancadas que recebera do administrador. O feitor-escravo e os demais escravos pediram paciência a Pernambuco. Mas a liderança dele era mais forte. Diante dos argumentos de Antônio Pernambuco, o eterno “primeiro escravo”, dezenove cativos abandonaram a sede da fazenda, fixando-se em suas matas. Os escravos fugiram no dia primeiro de janeiro de 1850, refugiando-se nas imediações da fazenda. Recusavam-se a voltar ao trabalho no eito enquanto o administrador não fosse demitido pelo Comendador Boaventura. Conforme o depoimento de um dos escravos no processo judicial, o grupo fugiu porque não suportava mais os maus-tratos, castigos e ameaças do administrador João Antônio. Permaneceram três meses nas matas da fazenda alimentando-se de milho e abóbora que colhiam na roça da propriedade. O líder dos escravos, Antônio Pernambuco, tinha como objetivo refugiar-se nas matas e não fugir, aquilombando-se. Sua intenção era voltar ao trabalho na fazenda, mas sem as perseguições e os rigores praticados pelo administrador. Articulado, desejava chamar a atenção do comendador, proprietário que não residia na fazenda e nada sabia do que se passava em relação às sevícias sofridas pelos seus escravos. É significativo que Antônio Pernambuco tenha declarado no processo que serviria somente ao comendador, não se sujeitando mais às ordens do cruel administrador.
Informado de que os escravos fugidos estavam nas proximidades, o administrador organizou dois grupos para fazer rondas pela fazenda. Dois feitores e um ferreiro faziam parte de um dos grupos na ronda. João Antônio ordenou que fechassem na senzala os demais escravos e dera ordens para desferir foiçadas em qualquer um que não se identificasse. Paralelamente, o escravo Moisés percorria a mata da fazenda a mando do Comendador Boaventura, com ordem de encontrar os escravos fugitivos e convencê-los a retornarem pacificamente à fazenda. Os escravos decidiram voltar, mas Pernambuco não deixou, pondo-se no caminho e ameaçando aqueleque se animasse a dar um passo. No entanto, chovia de tal maneira que Pernambuco teve que retroceder. O esgotamento pela fome e pela chuva fez com que os escravos retornassem a fazenda para tomar padrinho, ou seja, alguém que intermediasse o retorno deles à fazenda sem sofrerem os rigores das penas infligidas aos fugitivos. No retorno a sede da fazenda da Ponte das Tábuas, exatamente no dia 13 de fevereiro de 1850, os escravos encontraram um dos grupos da ronda. Chegando próximo ao moinho da fazenda, viram um vulto que supunham ser de branco, pela maneira de falar, que indagou-os perguntando quem eram. Era o ferreiro que fazia ronda na fazenda. Antônio Pernambuco, armado com uma foice, investiu contra o ferreiro aplicando-lhe algumas foiçadas. Logo após, outros escravos puseram-se a dar foiçadas no ferreiro movidos pelo exemplo de Pernambuco. Parece que os escravos fugitivos teriam matado o ferreiro julgando que matavam o administrador. Fugindo do local, toparam com dois homens da ronda, o feitor-escravo e o sobrinho do administrador, atacando-os, dando-lhes pancadas, uns com paus, outros com foices. Porém, alguém pediu por eles, que não os matasse e na confusão entre os escravos de mata ou não mata, ambos conseguiram fugir.
Os escravos voltaram para o mato até serem encontrados pelo escravo Moisés, que trazia recado do Comendador Boaventura para retornarem, dando a notícia que João Antônio já não se achava mais na administração da fazenda. Como o administrador fora demitido pelo comendador, os escravos fugitivos retornaram a fazenda. Entre o dia da morte do ferreiro e a volta dos escravos passaram-se 15 dias. O alferes comandante do destacamento e seus soldados foram buscá-los na fazenda. O administrador João Antônio declarou ao delegado de polícia de Nova Friburgo que os escravos sempre se portaram bem, obedecendo-o. Porém, nos últimos tempos, “os pretos” andavam arredios e que não julgava que era tratar mal castigá-los quando mereciam, fazendo-os trabalhar. Naquela época a classe senhorial vivia sob o medo de insurreições escravas: A revolta dos escravos no Haiti e a insurreição dos escravos muçulmanos maleses na Bahia, para ficar em alguns exemplos. Em razão de ter havido um homicídio um processo criminal foi instaurado indo a júri popular na Câmara Municipal de Nova Friburgo. Antônio Pernambuco e outros dois escravos foram condenados pela morte do ferreiro à pena de galés perpétuas, ou seja, trabalhos forçados em obras públicas. Pernambuco por ter incitado os escravos a fuga, receberia ainda 400 açoites, aplicados na cadeia da vila de Nova Friburgo.
Na história da escravidão no Brasil, os escravos eram proibidos, por lei, a terem qualquer instrução, sendo todos analfabetos. Logo, não possuímos registros de suas memórias e de suas “vozes”. No entanto, em processos criminais podemos “ouvi-los”, em seus depoimentos. No crime da Ponte das Tábuas, Antônio Pernambuco, o primeiro escravo, falou: “Meus parceiros, vamos fugir, porque o senhor João Antônio quer dar cabo de nós todos”.
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