Um centro de peste na cidade salubre
Cidade privilegiada do estado do Rio em decorrência de suas excepcionais condições climáticas, uma das mais aprazíveis e lindas estâncias brasileiras, era assim considerada, desde o início do século XIX, a vila de Nova Friburgo. No centenário da independência do Brasil, em setembro de 1922, assim se descreveu Friburgo no álbum do estado do Rio de Janeiro: “a pureza do ar, a temperatura amena, a superioridade da água, fazem de todo o município um inigualável sanatório”. Virgílio Corrêa Filho, assim escreveu sobre Nova Friburgo, no início do século XX: “Por isso espalhou-se, célere, a fama de cidade salubre, para a qual convergem os doentes esperançosos de uma cura ou alívio aos seus achaques, naquele ambiente de ar leve e puro, em que a vida desabrocha em manifestações sugestivas de pujança”. Foi em razão destes cantos de louvor ao clima de Nova Friburgo que no último quartel do século XIX, a Marinha de Guerra Imperial elegeu Nova Friburgo para estabelecer uma enfermaria de beribéricos. A enfermaria proveria à cura e convalescença de seus marujos acometidos de beribéri, doença que atacava aos indivíduos que permaneciam muito tempo no mar, provocando-lhes a deficiência de vitamina B1. Até então a marujada ficava internada na Enfermaria de Beribéricos de Copacabana, no Rio de Janeiro. Em abril de 1899, entra em cena o Almirante Carlos Balthazar da Silveira, Ministro da Marinha, que expressou seu descontentamento em relação à enfermaria de Copacabana. Declarava que a mortalidade era avultada naquela enfermaria devido à sua instalação ser quente e úmida. De acordo com ele: “...Torna-se urgente sua remoção para uma localidade de clima mais ameno, que possua água potável boa e abundante...” Em decorrência deste manifesto, em 25 de julho de 1889, foi inaugurada em Nova Friburgo uma enfermaria provisória para tratamento das oficiais e praças da Armada acometidos de beribéri. A enfermaria funcionava na rua Gal. Osório, próximo ao Colégio Anchieta. Mais de um mês depois de instalada, um diretor do Hospital de Marinha da Corte enviava o seguinte ofício ao Ministro da Marinha: “Tenho a honra de enviar a Exa. os mapas dos doentes de beribéri tratados em Nova Friburgo (...) as duchas aplicadas com método e cuidado constituem um meio terapêutico de grande alcance(...) aqueles que foram paralíticos e com atrofias musculares ainda se acham muito enfraquecidos e que só agora e depois de trinta e tantas duchas é que deixaram as muletas...” Estas duchas foram aplicadas no Instituto Hidroterápico que já havia em Friburgo. Foi provavelmente neste momento que a Marinha abre os olhos para aquisição de tal estabelecimento. O Instituto Hidroterápico ou Casa de Duchas foi construído em 1870, pelos médicos Carlos Éboli e o Dr. Fortunato. No entanto, com o falecimento de Éboli, em 1885, o estabelecimento fica acéfalo, pois perde seu timoneiro no tratamento à base da hidroterapia. Desde então, o instituto parece enfrentar dificuldades financeiras. O Ministério da Marinha entabulou então negociações para aquisição do Instituto Hidroterápico, do qual já se servia. Os friburguenses e as instituições, a exemplo da Câmara, se pronunciaram contra tal aquisição, pois iria comprometer a salubridade de Nova Friburgo já que o instituto se localizava no centro da cidade. Anexo ao Instituto Hidroterápico havia o Hotel Central, que fazia parte do instituto, que é hoje o Colégio N.S. das Dores. O interesse no Instituto Hidroterápico adequava-se perfeitamente os propósitos da Marinha, pois o tratamento à base da hidroterapia era preconizado como medida terapêutica para a cura do beribéri. Possuindo a Casa de Duchas todas as instalações e aparelhos para tal fim, os problemas financeiros do instituto encaixavam-se como uma luva junto aos projetos da Marinha para adquirir tal estabelecimento. Porém, a Marinha não contava com a presença de um ilustre veranista e assíduo frequentador de Friburgo: Rui Barbosa. Foi este advogado e político o responsável pela obstrução deste projeto, adiando por alguns anos a vinda do Sanatório para Nova Friburgo.
A HISTÓRIA DO SANATÓRIO NAVAL EM NOVA FRIBURGO
Rui Barbosa evita a extinção de Friburgo
A Marinha desejava estabelecer em Nova Friburgo uma enfermaria para cura de seus oficiais e praças acometidos por beribéri. Para tanto, iniciou negociações para aquisição do Instituto Hidroterápico que havia em Nova Friburgo. No entanto, Rui Barbosa, veranista habitué em Nova Friburgo, fez uma brilhante defesa contra a instalação de um hospital do coração da cidade salubre. No jornal Diário de Notícias, de setembro de 1889, escreve Rui Barbosa dirigindo-se ao Ministro Ouro Preto, homem forte do governo imperial, protestando contra a aquisição do Instituto Hidroterápico pela Marinha pois contrariava a população permanente e flutuante de Nova Friburgo, “ameaçando-a na sua salubridade”. Em 1891, a viúva de Carlos Éboli, médico fundador do Instituto Hidroterápico, acabou vendendo este estabelecimento para os médicos Ernesto Brazílio, Galdino do Valle, entre outros acionistas. Em dezembro de 1891, foi reinaugurado o Instituto Hidroterápico em grande estilo na cidade. Porém, em 1895, o instituto entrou em processo de falência e todo o complexo incluindo o hotel e a Casa de Duchas foi arrematado pelo Banco Comercial.
Foi em razão da brilhante retórica de Rui Barbosa que foi extinta em 1890, em Nova Friburgo, a enfermaria de beribéricos tendo os doentes sido transferidos para Copacabana, no Rio de Janeiro. No entanto, quase dez anos depois, o pesadelo volta a assombrar Nova Friburgo. A Marinha inicia negociações com Carlos Engert, proprietário do Hotel Leuenroth, para ali instalar seu hospital. Entra em cena novamente a “pena” de Rui Barbosa em outra eloquentíssima e erudita defesa da salubridade do clima de Nova Friburgo, que poderia ser afetado com a vinda de um “centro de peste” no coração da galante vila. O beribéri era considerado à época uma doença infectocontagiosa e, portanto, transmissível. Hoje sabemos que não é contagiosa. Este projeto seria a “extinção de Friburgo”, argumentava Rui Barbosa, e mais uma vez o brilhante advogado impede a vinda do Sanatório Naval para Nova Friburgo.
Já havia na cidade um lazareto, um prédio construído para abrigar doentes na hipótese de uma epidemia. Este prédio existe até hoje em Friburgo, em Duas Pedras, esquecido em meio a um conjunto habitacional de classe popular denominado de Lazareto. O lazareto encontra-se localizado no alto de um morro, bem distante do núcleo urbano. A Marinha provavelmente percebendo que o que incomodava a população era a localização da enfermaria de beribéris e não, o estabelecimento em si, optou por um local distante do centro da cidade, a exemplo do lazareto. Fiquemos atentos que o Sanatório Naval hoje nos parece perto, mas naquela época o sentido de distância era outro. Para tanto, a Marinha vislumbrou o “barracão” do conde de Nova Friburgo que consistia em um pitoresco chalé, que servia de pavilhão de caça da família do conde. Desta feita, a Marinha ampliara seus projetos. De acordo com o regulamento do Serviço Hospitalar, não se instalaria apenas uma enfermaria, mas sim um sanatório que serviria para o tratamento não somente do beribéri, mas igualmente de tuberculosos e de portadores de moléstias infecciosas.
A HISTÓRIA DO SANATÓRIO NAVAL EM NOVA FRIBURGO
De barracão de caça a Sanatório Naval
A Marinha após haver negociado a aquisição do Instituto Hidroterápico e do Hotel Leuenroth foi impedida pela intervenção de Rui Barbosa que se manifestava contra a instalação de um hospital de beribéricos no coração da cidade. Mas a Marinha finalmente acertou e escolheu um local ermo, no alto de uma colina, a exemplo do lazareto, para abrigar seus doentes: o barracão de caça do Conde de Nova Friburgo, que consistia em um pitoresco chalé compreendendo ainda alguns anexos. Numa quinta-feira, em 30 de junho de 1910, finalmente o Sanatório Naval foi inaugurado em Nova Friburgo. Instalado numa colina e cercado de extensa mata, desta vez não houve protesto dos habitantes locais. Para inauguração compareceu o próprio presidente da República, Nilo Peçanha e uma grande comitiva, que incluía ministros de Estado e oficiais de alto escalão na hierarquia militar. A gare da Leopoldina ficou revestida de folhagens, flores multicores e bandeiras. Um piquete de cavalaria de atiradores escoltou a carruagem do presidente da República em seu percurso pela cidade. Os alunos do Colégio Anchieta deram grande realce aos festejos e todo o corpo discente, formado em batalhão, devidamente uniformizado, se estendeu em linha e acompanhou também o cortejo do presidente. O banquete para oitenta talheres teve início às 18:00 horas e na hora dos brindes, o diretor do sanatório, o Capitão-de-Fragata e médico, o Dr. Joaquim Ignácio Bulcão, disse em seu discurso: “Exmo. Sr. presidente: Coube a V. Exa. a glória de dotar a Marinha de Guerra de um sanatório, instalado em belo edifício, em local salubre, clima ameno, necessidade essa há muito reclamada e agora de pronto e sem vacilação realizado por V.Exa....”. De acordo com os discursos, percebe-se que a interferência do presidente Nilo Peçanha foi essencial para se concretizar o antigo projeto da Marinha. Sua presença na cidade era somente para referendar o sanatório em Nova Friburgo que tantos ânimos despertaram nos anos antecedentes, tendo como arauto contra a vinda deste estabelecimento à cidade o grande jurista e estadista Rui Barbosa. Mas desta vez a “pena” de Rui Barbosa se calara. Os ventos políticos eram outros e além do mais o sanatório, como disse, encontrava-se em local distante do centro da cidade. O Sanatório Naval compreendia uma área de 196 alqueires, com extensa mata que cercava o prédio principal e anexos. Cumpre destacar que quando de sua inauguração, o Sanatório Naval não estava devidamente aparelhado, faltando a instalação hidroelétrica, a enfermaria dos tuberculosos, entre outros aspectos de infraestrutura. O serviço considerado imprescindível no Sanatório Naval era a hidroterapia. Em 1918, já contava com esta aparelhagem, faltando apenas as obras de alvenaria para a sua instalação. Em relatório anual neste mesmo ano apresentado pelo diretor do Sanatório Naval, colocou-se em destaque a “...ação salubérrima do clima das montanhas de Nova Friburgo...”
No entanto, até 1921, o Sanatório Naval ainda não havia concluído suas obras de infraestrutura, o serviço de hidroterapia funcionava precariamente, faltavam os aparelhos destinados à eletroterapia e de fisioterapia, cujo pavilhão fora recentemente concluído. Cumpre destacar que o hospital servia somente às praças e oficiais da Marinha e não à população em geral. Em 1921, o então diretor do Sanatório Naval, consignara em relatório: “A magnificência deste clima adorável, que eu jamais cansarei de exaltar, cujos surpreendentes resultados para a saúde dos nossos marinheiros têm observado todos os médicos da Marinha que aqui servem, me levam a, ainda uma vez, manifestar minha opinião, já bastante conhecida, isto é, que a Marinha tudo teria a lucrar em construir aqui definitivamente a enfermaria para seus tuberculosos.” Surge em Friburgo o Hospital de Tuberculosos, conhecido na cidade como “o H.T.”, modo pela qual a população friburguense iria se referir em relação a este estabelecimento.
A HISTÓRIA DO SANATÓRIO NAVAL EM NOVA FRIBURGO
Surge o H.T., o Hospital de Tuberculosos
Desde a sua inauguração em 30 de junho de 1910, o Sanatório Naval dedicava essencialmente sua prestação de serviço à cura do beribéri de seus oficiais e praças da armada. Não obstante estar no regulamento do Sanatório Naval de Nova Friburgo o tratamento de tuberculosos desde a sua implantação, até então a prioridade fora o beribéri. No entanto, a partir do ano de 1933, a prioridade voltara-se para outra doença: a tuberculose. Em 18 de fevereiro de 1936, foi inaugurado o Hospital de Tuberculosos. Desde então, os oficiais e praças da Marinha passaram a levar a alcunha de “H.T.” entre os friburguenses, ou seja, oriundos do hospital de tuberculosos. Complementando seus serviços seriam criados o Departamento de Convalescentes e ainda a Colônia de Férias. Sempre festejada, Nova Friburgo, a cidade salubre, foi assim descrita pelo Jornal do Brasil: “Nova Friburgo é um recanto silencioso do estado do Rio, de um clima ameno, suspenso entre montanhas verdejantes por onde correm fios dá água cristalina e brisas suaves que espalham perfume de flores. No ponto mais alto edificou o conde de Nova Friburgo o seu palácio de verão. Grandes árvores, um imenso jardim rodeia os edifícios, há alguns anos adquirido pelo governo Nilo Peçanha para nele instalar o Sanatório Naval...” (Jornal do Brasil, 06/03/1939)
Nova Friburgo testemunhava o charmoso bonde de burros do Sanatório Naval que corria sobre os trilhos de ferro, destinado a conduzir oficiais e funcionários que residiam fora do sanatório e igualmente os convalescentes que chegavam. O livro de visitas do Sanatório traz nomes da quase totalidade dos titulares da pasta da Marinha, governadores do Estado do Rio, ministros de Estado, Getúlio Vargas, entre muitas outras autoridades. Depois de mais de três décadas na cidade, tudo era harmonia e paz entre os friburguenses e o Sanatório Naval até que um decreto-lei estadual, de n°1943, de 09 de junho de 1947, provoca nova investida contra aquele estabelecimento. Os prefeitos do estado deveriam proceder ao zoneamento da cidade, e dentro de cinco anos, a contar da data do decreto, todas as organizações hospitalares para tuberculosos deveriam ser removidas dos perímetros urbanos e suburbanos. Em 1947, o então prefeito de curto mandato, José Eugênio Muller, envia correspondência ao Ministro da Marinha, o almirante Silvio de Noronha, pedindo o deslocamento do H.T. para outro local, mais afastado da cidade. Entre 1910 e 1945 inúmeras indústrias de grande porte já haviam se instalado em Friburgo, como a Rendas Arp, Ypu, Filó e Ferragens Haga, modificando a geografia cidade. O município se urbaniza e um bairro operário se instalara próximo ao H.T. e o Sanatório Naval já não era um estabelecimento tão isolado como outrora. De acordo com o prefeito, iniciar-se-ia uma verdadeira “cruzada” na cidade contra peste branca, assim chamada a tuberculose, removendo pensões que recebiam tuberculosos e promovendo o isolamento destes doentes do centro da cidade. Em correspondência oficial o prefeito é ácido ao afirmar ao Ministro de Marinha que “...ninguém ignora que o H.T. é o maior responsável pelo alarmante surto de peste branca neste município”. A investida, destaco, era tão somente contra o H.T., em que se pedia a sua remoção, e não contra os demais departamentos do Sanatório Naval. Mas quem colocou mais lenha na fogueira fazendo coro ao prefeito, foi um importante empresário, descendente de italianos que imigraram para Nova Friburgo no final do século XIX, e um dos homens mais prósperos da cidade: Augusto Luiz Spinelli.
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A cidade de Friburgo, um vasto hospital de tuberculosos
A prefeitura intimara o Sanatório Naval a deslocar o Hospital de Tuberculosos para um local mais afastado da cidade. O prefeito contou com o apoio de um empresário originário de uma das mais importantes e prósperas famílias da cidade: Augusto Spinelli. Spinelli declarara em artigo no jornal “A Paz”, que o H.T. “trazia estragos à população, à sua economia, vida social, à sua fama de cidade salubre, além de ser um foco de infecção pernicioso para os habitantes de Friburgo”. Este manifesto causou tamanho furor que mereceu uma resposta aberta à imprensa do então diretor do Sanatório Naval. A resposta do diretor, em forma de entrevista, inicia com um relatório sobre um quantum que o sanatório injetava na economia local anualmente, adquirindo gêneros no comércio, fora o que consumia seu corpo médico, pessoal administrativo e seus familiares, que habitando no município, também fomentavam a economia da cidade. A seguir, enumera a prestação de serviços que o sanatório realizava, gratuitamente, aos civis friburguenses, tais como consultas médicas, radiografias, radioscopias e exames de urina, fezes e sangue. Lembrou que antes do Departamento de Tisiologia para tratamento de tuberculosos ter sido instalado em Friburgo, em 1937, a cidade já era habitada por centenas de tuberculosos, exercendo suas múltiplas atividades, inclusive no comércio de gêneros alimentícios, colocando em perigo a população. Discorre ainda sobre todo o procedimento higiênico adotado no sanatório, como captação de água própria, tratamento do esgoto, esterilização de todos os objetos e que os “baixados” só eram licenciados para ir à cidade quando apresentam negativo o exame do escarro. Terminou por criticar os tuberculosos que circulavam pela cidade sem qualquer repreensão e a falta de tratamento do esgoto do município, já que abrigava muitos destes doentes que para ali acorriam desde tempos imemoriais devido às características favoráveis de seu clima à cura da doença.
Diante deste episódio, percebe-se que Friburgo transformara-se, como bem definiu Augusto Spinelli, em um “vasto hospital”. Um diretor do Sanatório Naval assim declarou.“(...)Esses quarenta marinheiros tuberculosos, representam pequena parcela frente à esmagadora a maioria de muitas centenas de tuberculosos da cidade, que livremente habitam os prédios particulares, os hotéis e as pensões improvisadas e que são outros focos ambulantes de disseminação dessa triste enfermidade(...)concluímos que a cidade de Nova Friburgo é que constitui por si mesma, perigoso foco de tuberculose, tifo e outras doenças contagiosas, contaminando ainda as localidades vizinhas, pelo transporte fluvial de milhões de micróbios vivos, procedentes do lançamento direto aos rios da cidade de todos os excreta de seus habitantes, sem o menor tratamento de prévia depuração....”
Ao que parece esta foi a última investida contra o Sanatório Naval. Porém, para contemporizar e prevenir futuros reclamos, em 11 de junho de 1958, foi finalizada a obra da “Escola Primária Sanatório Naval”, iniciando as atividades escolares no ano seguinte. Funcionava em três turnos, sendo o terceiro noturno para alfabetização de adultos. Fornecia ainda merenda escolar, uniforme aos alunos, atividades esportivas e cinema às crianças. Estava selada a pax romana com Nova Friburgo. A história do Sanatório Naval em Nova Friburgo só faz corroborar com o tipo de representação que se fazia à época da cidade, a de cidade salubre, onde o “clima e a água desta abençoada terra, dão alento aos vivos e ressuscitam os mortos; pode-se afoitamente dizer...”
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O Beribéri em Friburgo
A brilhante defesa de Rui Barbosa que impediu que o Sanatório Naval se implantasse no centro da cidade é um precioso documento histórico. Na primeira parte, a carta de Rui Barbosa contra a aquisição do Instituto Hidroterápico, que ficou conhecida na imprensa como “O Beribéri em Friburgo”:
“Ao nobre Ministro da Marinha vimos endereçar hoje uma petição em nome do povo de Nova Friburgo e dessa parte seleta dos habitantes do Rio de Janeiro, que atualmente procura nas amenidades daquele bom clima refúgio precioso contra as inclemências do verão nesta capital (...) somos o eco, rigorosamente exato, das apreensões, sob que se acham, quase aterrados, os habitantes daquela região, digna, por mais de um título, de especiais atenções por parte do governo.(...)Tivemos a franqueza de reprovar essas medidas(...)e contrariaram seriamente os da população permanente e flutuante de Friburgo, ameaçando-a na sua salubridade(...)A presença da marujada desenvolta, sem freio possível de disciplina, nem repressão policial exeqüível, nas condições do lugar e nas relações inevitáveis desses hóspedes para com ele, têm sido um elemento de insegurança, desordem e alvoroto entre os hábitos morigerados e pacíficos daquele povoado, promovendo cenas inquietadoras, alterando a tranqüilidade patriarcal daqueles sítios, e trazendo as famílias em contínuos receios, justificados por incidentes, que se multiplicam, e engravescem com o decorrer do tempo.(...)É o caso estar se negociando por parte do governo a compra do estabelecimento Éboli cujas duchas são um dos atrativos capitais à corrente, que todos os anos se dirige para ali, em procura de ares e banhos medicinais. A inserção da enfermaria naval no centro do povoado seria para ele verdadeira calamidade. Alterar-se-iam, com essa inovação deplorável, todas as condições de paz, higiene e recato, que constituem o principal encanto daquela estação de saúde, e fazem dela esse doce abrigo remansoso e abençoado, para os que carecem de pedir à natureza, em regaços como aquele, restauração das forças do espírito e do corpo. Friburgo despojado de seu instituto público de hidroterapia e habitado pela maruja, não seria mais Friburgo. Toda a população adventícia, que o cobiça seis meses em cada ano, desertaria, parte da indígena ver-se-ia obrigada também a abalar pouco a pouco, e o resultado seria a decadência, a ruína, a extinção daquela colônia formosa e prestantíssima em breve tempo, se de pronto lhe não acudissem com o remédio reparador..."
A seguir, a argumentação de Rui Barbosa quando da aquisição do Hotel Leuenroth. “Anda, com efeito, estes dias, outra vez, o Ministério da Marinha em diligências, para dotar Friburgo de um bem organizado centro de peste. Variou apenas a escolha do Instituto Eboli para o Hotel Leuenroth. (...)aquela singela casaria(...)não é só o albergue dos hóspedes, que a ocupam: é o refúgio comum de todos os veranistas nas horas menos frescas da estiagem por aquelas serras. Ora aí está o que se imagina transformar agora numa estação matalotes e num viveiro permanente de epidemia. Este projeto é a extinção de Friburgo...”
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O caso do Campo de Concentração
O Sanatório Naval foi palco de acontecimentos importantes na história do país e nas memórias de alguns habitantes. Há uma interessante passagem ocorrida ao final da Primeira Guerra Mundial(1914-18). O Sanatório Naval recebeu em 1917, quando o Brasil entra na guerra contra a Alemanha, 600(seiscentos) marinheiros alemães tripulantes dos 45 navios mercantes estacionados em portos brasileiros e que foram apresados. Os tripulantes foram detidos na qualidade de “internados”. Criou-se uma infraestrutura para abrigar estes prisioneiros construindo-se duas casas de alvenaria e quatro grandes barracões de madeira para alojamento dos mesmos. Nesta ocasião, ocorre entre outubro e novembro de 1918, um surto de gripe espanhola no mundo, atingindo o Brasil e matando boa parte da população. Foram trazidos para Nova Friburgo 32 doentes acometidos por esta gripe, transferidos do Hospital Central da Marinha. Ocorre então uma tragédia. Estes doentes da gripe espanhola acabaram infectando o acampamento dos prisioneiros alemães. Foram contaminados por esta doença 276 dos 600 prisioneiros, tendo falecido cinco deles. Agora, por que trazer prisioneiros de guerra alemães para Nova Friburgo se o Sanatório Naval era tão somente um hospital e não uma base militar propriamente dita? Provavelmente foi o clima Friburgo, semelhante ao europeu, que teria concorrido para abrigar os alemães, por lhes ser mais favorável em termos de adaptação. D.João VI não escolheu esta região para abrigar os suíços devido ao fator climático? Por outro lado, Friburgo já possuía uma considerável colônia de alemães, o que facilitaria na comunicação com os prisioneiros.
Paralelamente a todos estes acontecimentos, Nova Friburgo iniciava seu processo de industrialização, cujas empresas eram de empresários alemães. Terminada a guerra em 1918, os prisioneiros alemães foram retirados do Sanatório Naval. No entanto, há relatos de que vários destes alemães prisioneiros de guerra no Sanatório Naval foram cooptados pelos industriais alemães para trabalhar em suas fábricas, instalando-se definitivamente em Nova Friburgo. Os prisioneiros alemães foram autorizados a trabalhar nas comunidades onde estavam locados, desde que o empregador mantivesse a Comissão Militar informada sobre a situação do “internado”. Carlos Rodolpho Fischer nos informa que diversos prisioneiros alemães “internados” no Sanatório Naval, se radicaram em Nova Friburgo, a exemplo de Richard Hugo Otto Ihns(1889-1960), que após a guerra se radicou em Nova Friburgo e ingressou na empresa M. Sinjen & Cia., a convite do Conselheiro Julius Arp, tornando-se um líder militante da colônia alemã no município. Fischer afirma que esta foi a “terceira leva” de colonos alemães, marcando a história de Friburgo, apesar de não fornecer o quantitativo dos que ficaram. Não se sabe quantos destes prisioneiros alemães se estabeleceram em Friburgo. Porém, se consideramos que as imigrações anteriores de 1824(343 colonos) e de 1892 (703 imigrantes) de alemães a Nova Friburgo foram pouco significativas, pode-se de fato afirmar ser esta a “terceira leva”, como disse Fischer. Existem imagens registrando o acampamento destes prisioneiros alemães. No cemitério luterano, um lugar de memória, se encontram enterrados os corpos dos cinco alemães aprisionados que morreram simultaneamente de tifo.
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A Memória
Durante uma série de matérias divididas em sete partes, procurei mostrar a trajetória do Sanatório Naval em Nova Friburgo, utilizando algumas fontes secundárias e artigos de jornais da época. No entanto, é fundamental conhecer as memórias de alguns friburguenses que recordam-se dos primeiros anos de instalação do Sanatório Naval. Inicialmente, nas memórias de Nondas da Cunha Ferreira, agricultor, nascido em 1929, um fato que presenciou no Sanatório Naval lhe chamou a atenção. Como sua mãe lavava a roupa dos doentes tuberculosos do sanatório, Nondas, com oito anos de idade, a acompanhava puxando um carro de boi. Às 5:00 horas da manhã, quando ele e sua mãe iam apanhar a roupa, o médico tisiologista, com uma lista na mão, dizia o seguinte para os oficiais e praças doentes: “Antônio, José, Alberto e Paschoal, vocês vão até o paralelo 1.” No paralelo havia uma bica d’água e eles tinham que caminhar até ali e beber bastante água em jejum. “Gilberto, Antonio e João vão até o paralelo 3”. Já o paralelo 3 ficava mais distante, e os que eram indicados para lá poderiam andar mais, pois estavam em melhor condição de saúde. “Nossa água contém muito oxigênio”, esclarece Nondas e acrescenta: “O que se praticava com a marujada à época era tomar água mesmo sem querer, de manhã, em jejum, e andar a pé de manhã bem cedo. Às cinco horas da manhã o médico despachava todo mundo. Agora quando voltavam do mato afora, uma estradinha de cinco quilômetros, eles tomavam café e na mesa tinha pão, queijo, geleia, bolo, para comer à vontade e quanto quisesse. Água boa, oxigênio, boa alimentação, era o que curava”, recorda-se. “Hoje já tem a vacina, o remédio, mas naquela época se tratava assim”, observou ele.
Maria Corrêa de Souza, Maria Luiza Braune, Leyla Melo e Nelie da Costa, que viveram sua adolescência na década de 40, do século XX, recordam-se dos lindos rapazes do H.T.(do Hospital de Tuberculosos). Os mais saudáveis, os “baixados”, eram autorizados a vir ao centro da cidade passear, porém, muitos fugiam do sanatório, saindo sem permissão. Os marinheiros portavam roupa azul e branca e os fuzileiros navais um traje vermelho. Os pais proibiam as moças de flertarem com os H.T., por receio de contágio da doença, mas apesar da proibição, muitas se casaram com os rapazes do H.T. Um diretor do Sanatório Naval declarara que o procedimento moral dos H.T. nunca recebera críticas da população. Rui Barbosa já teria se queixado da “marujada desenvolta, sem freio possível de disciplina, nem repressão policial exequível” na patriarcal Nova Friburgo. No Beco da Sofia, casa de prostituição de “moças-damas” no centro da cidade, os H.T. eram assíduos frequentadores, sendo vistos como criadores de caso e violentos. Ainda que não autorizados pelo médico viviam passeando pela cidade, sem o menor controle por parte da direção da Marinha.
A história do Sanatório Naval só faz corroborar a representação que se fazia à época de Nova Friburgo, como cidade salubre. Foi temendo macular o clima daquele santo vale, onde do céu se lê as cinco montanhas formarem a palavra “SAÚDE”, já dizia o trovador J.G. de Araújo Jorge, que se criou uma animosidade por parte da população contra o Sanatório Naval. Mas deixemos as tensões de lado e fiquemos com a lembrança do Sanatório Naval conforme as memórias de Maria, Maria Luiza, Leyla e Nelie, que se recordam dos marinheiros e fuzileiros navais com seus lindos trajes e adornos militares flanando pela praça da cidade. Quando perguntei à elas se os H.T. eram bonitos, responderam em uníssono: “Eram Lindos!”
Meu avô paterno, Paul Max Künzel, estava desde 1914, aportado em Salvador - Bahia, pois veio num vapor, trabalhando, por ocasião do início da Primeira Guerra. Em 1917 conseguiu um emprego, como mecânico, que era sua formação na Alemanha, na cidade do Rio de Janeiro. A empresa onde trabalhava enviou meu avô para Nova Friburgo em 1918, a fim de montar na Fábrica Ypú a Oficina Mecânica. O navio no qual ele aqui chegou, o "Steiermark" foi arrestado pelo Governo Brasileiro e depois de muitos anos de serviço, na década de 50, foi desmanchado. Gosto muito dessa história.
Estou encantada!, sempre, por motivos óbvios admirei o Sanatório Naval ( o H.T.), seu casarão belíssimo,e o pouco que conhecia da sua história, ele fez parte da minha vida!, Obrigada!
Dois comentários: 1) o "presidiário" Richard Hugo Inhs veio a tornar-se o principal executivo da Rendas Arp na primeira metade do século passado; 2) tenho um agradecimento especial ao SANATÓRIO NAVAL por ter operando em Nova Friburgo uma máquina de raio x que não estava disponível em nenhum outro hospital e clínicas da cidade e recorri ao SANATÓRIO para tirar a "chapa" do meu pulmão no dia 18 de fevereiro de 1978 para que eu começasse a trabalhar na TORRINGTON 3 dias depois.